27 de set. de 2021

Aberta temporada de caça às amorinhas

Minha filha Melissa aceitou ir à caça /  Foto: Danilo Kossoski
Frutinha desperta atenção pelo sabor entre cítrico e doce, mas encontrá-la exige persistência


Além do calendário preso à geladeira, uma maneira ainda mais antiga de marcar a passagem do tempo consiste em observar as plantas. E é quando as amoras-pretas surgem, pendendo de galhos verdes e atiçando a degustação por crianças na saída da escola, que está no início a primavera. 

Em Ponta Grossa, está aberta a temporada de caça às amorinhas. A Morus nigra se caracteriza pelo sabor entre cítrico e doce, e não pode ser encontrada em todas as esquinas. Mas, quem acha um pé carregado das frutinhas é recompensado. As manchas bordô nas camisetas são um efeito colateral do sabor, oculto entre as abundantes folhas verdes capazes de alimentar o famoso bicho-da-seda.

Amorinhas pretas

Para os mais velhos, as amorinhas pretas têm sabor de infância e de conquista. Isso porque os frutos surgem, amadurecem e, em poucas semanas, desaparecem. Por isso, buscar as frutinhas junto das crianças pequenas pode ser um bom programa para um fim de semana ensolarado. Algumas delas, inclusive, ficam perto de parques infantis.

Juliano Pazinato, 42 anos, foi uma dessas crianças que subir nas árvores para capturar amorinhas. Hoje tem árvore no quintal de casa, e aproveitava a tarde do último sábado para relaxar debaixo da sombra de amoreira, numa praça do Bairro Jardim Carvalho. "Toma, essas eu colhi de manhã. Leve pra casa pra fazer torta, geleia", diz, estendendo uma sacola plástica com centenas de amorinhas selecionadas. As mais escuras são as mais doces.

Encontrar as menos ácidas é desafio quase tão grande quanto encontrar as árvores. Cada planta oferece um fruto com sabor distinto e com maturação em tempo diferenciado. 

Onde colher em Ponta Grossa

Preparei um roteiro de alguns dos locais onde é possível colher as deliciosas frutinhas, sem ter que invadir área particular. Colha apenas as mais maduras, e sem quebrar galhos, guardando um pouco para quem vier fazer a colheita depois. Confira os endereços:


Rua Afonso Celso: em frente ao número 3356, Jardim Giana, Bairro Neves. As árvores ficam dentro de propriedade privada, mas os galhos ficam, em sua maior parte, na via pública.

Avenida Rocha Pombo: esquina com Rua Monte Alverne, Bairro Jardim Carvalho. Uma árvore se destaca no centro da pequena praça, com frutos maduros e em grande quantidade.

Rua Almirante Wandenkolk: esquina com Rua Euclides da Cunha, Bairro Uvaranas. Uma sequência de pelo menos cinco árvores chama a atenção.

Parque Ambiental: Criticado no passado pela ausência de árvores, o Parque Ambiental conta hoje com espécies de fruto comestível, como pitanga, romã e amoras. A mais carregada de frutos pode ser vista da Rua Ermelino de Leão, no Centro, entre o ponto de ônibus e a pista de caminhada.

Praça Alfredo Pedro Ribas: diante do Hospital Municipal Dr. Amadeu Puppi (antigo Pronto Socorro), no Centro da cidade, a grande árvore é consolo para quem descansar sob a sombra, à espera do horário de visitas aos pacientes.

Rua Silva Jardim: na praça junto à Rua Jacob Holzmann, a amoreira recompensa quem se arrisca a fazer a travessia entre as vias com intenso tráfego de veículos, entre os bairros Oficinas e Olarias.

Biblioteca Pública. Próximo ao parque infantil, ao lado da biblioteca no Bairro Olarias, algumas árvores ainda jovens oferecem as frutinhas escuras.

26 de mai. de 2021

Um bom pedreiro deixa sua obra



O homem da foto é Ariosvaldo da Silva Batista Filho. Mas a maioria o conhecia apenas por Ari. Ele foi mais uma vítima da covid-19. E sua ausência é sentida por mim, minha esposa, minha filha.

Aos 62 anos de idade, Ari partiu sem se despedir, e ainda por cima com promessas de voltar.

Ari era pedreiro autônomo, mas se aventurava em quase tudo que era obra. Era o mestre do improviso, do reparo, do fazer funcionar. Descobri isso lá pelo ano 2014.

Minha esposa quis cobrir a lavanderia. Chamamos um sujeito que fez o serviço de qualquer jeito. Prendeu as telhas com prego de sarrafo. Na primeira chuva com vento a gambiarra estava exposta.

Eu vi que não adiantaria chamar o mesmo cidadão. Foi quando me passaram o contato do Ari. 

Lembro que ele viu com incredulidade o serviço mal feito. Perguntei se tinha como arrumar. Ele analisou, pensou no que fazer, e veio com a frase que depois eu consideraria seu mantra e bordão: "Dá pra fazer, mas... Vai ser difícil."

Apesar da dificuldade, ele arrumou mesmo. Tempos depois, a gente se mudou para um apartamento. Precisávamos de alguém que quebrasse a antiga pia do banheiro e montasse a nova.

O Ari foi a escolha óbvia. Novamente não decepcionou. Também seria ele a escolha para arrumar o telhado de meu sogro.

Quando, enfim, me deparei com outra casa, bem antiga e precisando de reformas, o Ari ajudou a decidir pela compra. Eu acabei aceitando o negócio porque confiava que o Ari ia ajudar nos reparos.

No ano passado, ele reforçou a estrutura do telhado o quanto pôde. Trocou as paredes de madeira cheias de cupim. Consertou parte do piso da lavanderia. Arrumou o vazamento do banheiro. Instalou a pia da cozinha. Aumentou o muro e refez o forro da garagem. Trocou a caixa d'água, retelhou a cobertura, substituiu as calhas. Reforçou o assoalho. Em cada cômodo ele teve uma participação. 

No dia 16 de março ele faleceu. Eu só fui saber em maio. Eu nem sabia seu nome completo. Lamentei ter que apagar seu contato do celular. Esperava ainda poder chamá-lo muitas vezes.

Com o amigo Ari deixei a chave da casa enquanto ele trabalhava sozinho. Era de confiança. Me deu os parafusos e emprestou o grampeador com o qual reformei um par de poltronas. 

Se ficasse um instante ao seu lado, ele parava o trabalho e ficava conversando. Parecia ser seu defeito, mas o meu defeito é que é não ter tempo para conversar com os amigos.

O Ari fazia preço justo. Propunha executar o serviço pra gente pagar depois quando tivesse dinheiro. Nunca aceitamos a proposta tentadora, marca de um profissional que também confiava no cliente.

O Ari era serviço essencial. Um de muitos na pandemia. E era pessoa formidável, que eu lamento não poder encontrar mais. Sei que deu o seu melhor em cada serviço que pedimos. Eu não disse a ele pessoalmente, mas falei que o chamaria sempre que precisasse, e ele viu que era verdade. Certamente o chamaria de novo nos próximos meses.

As pessoas boas vão e deixam suas marcas. Aqui em casa elas estão por toda parte.

18 de mar. de 2020

Relato de um ataque invisível

Alertados desde o último dia de 2019, já aguardávamos a chegada de uma doença que se mostrou real na China, evoluía rápido, se espalhava mais rápido ainda, e matou milhares em poucas semanas.

Descrentes, os brasileiros viram as notícias a respeito do chamado novo coronavírus (Covid-19) como quem assiste a algo irreal como uma telenovela. Até que ele chegou.

Após menos de uma semana desde que o Covid-19 se tornou o principal assunto em pauta, ontem foi confirmada a primeira morte pela doença no país. Mas as consequência da simples menção ao contágio já alterou por completo as rotinas, e talvez o mundo nunca mais seja o mesmo.

Para você, que deve estar chegando de Júpiter ou outro planeta distante, talvez pareça exagero. No entanto, a verdade é que um elemento microscópico, que nem bem podemos chamar de vivo, já modificou drasticamente muito da rotina humana. Há quem diga, ainda que em tom de brincadeira, que o planeta Terra, percebendo que os humanos o destruíam, decidiu lançar uma defesa natural, e fez uso desse novo coronavírus. Também há quem diga que essa é uma arma criada em laboratório para dizimar parte da população, tendo em vista que a própria humanidade tende a se destruir a medida que cresce em número.

Mas, vamos analisar o cenário. Em menos de três meses, 3.200 mortos na China. Na Itália, 2.150. Isso para citar o país onde tudo parece ter começado e outro no qual a evolução foi mais rápida. Homens idosos e com doenças preexistentes compõem a maior parte das vítimas. Eles sofrem com insuficiência respiratória. Há pessoas que se infectam, mas apresentam um simples quadro gripal, mas todas são vetores para transmissão do coronavírus, que é altamente contagioso.

Essa perspectiva fez com que, desde a última semana, o Brasil busque formas de impedir o avanço da doença, já presente em todos os estados.

Aqui em Ponta Grossa, cidade do interior do Paraná, uma das maiores em população no estado, o município parece com um computador que acabou de ter a função "desligar" acionada, e que vai fechando programas paulatinamente, até apagar por completo.

Os eventos culturais foram os primeiros suspenso, assim como inaugurações. As aulas municipais não seriam suspensas na sexta-feira, na segunda-feira se tornaram facultativas e, na terça-feira, foram suspensas. As universidades, já no início da semana, anunciaram a interrupção de atividades. Hoje haveria um manifesto dos professores da UEPG, que parariam por melhorias no ensino e para a categoria. O Covid-19 obrigou tudo a parar e obrigou ao cancelamento do ato público.

Governos federal, estadual e municipal recomendam evitar aglomerações. Decreto estadual proíbe reunião de mais de 50 pessoas. Isso incluiu missas, casamentos e batizados. Os cinemas adiaram a estreias. As novelas dispensaram atores com mais de 60 anos das gravações, e estão mudando todos os roteiros por causa disso.

A Polícia Militar foi orientada pelo comando no Paraná a higienizar bancos das viaturas após transporte de suspeitos e, se o meliante apresentar sintomas de gripe, deve acionar o Samu antes de o conduzir à delegacia.

Em meio a tudo isso, o álcool gel, apontado como uma das principais formas de evitar contágio, atingiu preços absurdos e sumiu das prateleira. O ibuprofeno, medicamento largamente utilizado, ontem foi descrito como inadequado no tratamento para o coronavírus, porque pode piorar infecções. Os bebedouros de coluna, aqueles que você via nas escolas e supermercados, estão com os dias contados. Os cumprimentos com a mão, ao encontrar conhecidos, estão sendo substituídos por toque de cotovelos ou chutinhos com os pés. Não é brincadeira, não. Estamos vivendo isso agora.

Os espirros precisam ser contidos com os braços. Cada um tenta evitar a própria tosse. Sem informação, pessoas usam máscaras na tentativa de evitar um mal invisível.

De outro lado, vemos a dificuldade em garantir a proteção de nós mesmos. Minha filha de quatro anos está dispensada das aulas. Eu e minha esposa não estamos dispensados do trabalho. Ela vai ter que ficar com os avós à tarde, apesar da recomendação de evitar contato de crianças com idosos.

Sinto que estamos para viver uma corrida aos supermercados, onde as pessoas já começam a comprar em larga escala, pretendendo estocar alimento como ocorreu na greve dos caminhoneiros, só que de forma mais intensa.

A economia no Brasil, como sobreviverá? O coronavírus só é o assunto do momento há menos de uma semana. Já há várias lojas e serviços interrompidos. Empresas antecipando férias. Aeroportos fechados. Fronteiras fechadas.

As consequência de tudo isso a gente ainda não sabe. Mas o mundo nunca mais será o mesmo.

1 de nov. de 2019

Maus motoristas

Foto: Fábio Matavelli / Diario dos Campos
Dizem que quem aprende a dirigir em Ponta Grossa, sabe dirigir em qualquer lugar. Certo, quem diz isso sou eu. Mas não deve ser mentira. Estatísticas do Detran-PR comprovam que a megalópole princesina carrega consigo o título de uma das cidades que menos aprova nos testes práticos de direção. Mais de 44% não passaram na prova de direção e baliza. Perde apenas para os municípios de Faxinal e Londrina. E estamos falando do comparativo entre as 99 cidades que possuem Ciretran.

Percebi isso fuçando os anuários divulgados pelo Detran nos últimos anos. O dado mais recente é de 2017. Se voltarmos para 2016 e 2015, minha cidade natal conquistou o primeiro lugar no ranking das que mais deixam frustrados os candidatos a obter uma carteira de motorista. Em 2016, chegou a reprovar mais de 55% dos candidatos.

Nessa semana, quando escrevi reportagem com esses números, várias pessoas publicaram comentários nas redes sociais e compartilharam a notícia, expondo possível motivos para o número alto de reprovações. Houve quem culpou as ladeiras, a má sinalização, o péssimo estado de conservação das ruas. Teve quem descrevesse o que seria uma máfia das auto-escolas, sugerindo que faziam tudo para que os candidatos reprovassem, para terem que pagar novamente pelas aulas. E teve quem culpasse um único homem, responsável há anos pelas avaliações feitas no Ciretran daqui.

O curioso, é que ninguém ergueu a mão para dizer que foi reprovado injustamente. Que fez tudo certo e, ainda assim, foi reprovado. Que foi vítima de um instrutor ou de um avaliador corrupto.

Convenhamos, basta dirigir pelas ruas da cidade que qualquer um vai notar. Os condutores aqui são muito ruins, mal educados, inexperientes, desastrados, sem noção de espaço, sem habilidade mesmo. Os motivos para isso, eu não sei. Mas já está na hora desse pessoal assumir a culpa.

Menos eu. Eu dirijo super bem!!

30 de out. de 2019

Amigo a gente reconhece

O meu primeiro ano de escola não foi difícil do ponto de vista do ensino formal. Língua portuguesa, matemática e demais disciplinas eu tirei de letra. Mas minha mãe ficou preocupada quando foi chamada pela equipe pedagógica, que demonstrou inquietação com o fato de eu não me relacionar com os colegas. "Na hora do recreio, ele só fica sentado. Enquanto os outros alunos correm, brincam, conversam, ele só come o lanche e fica esperando o recreio acabar", comentaram.

Aí minha mãe me disse que eu precisava fazer amigos. Mas, sem dar maiores detalhes de como isso funcionava, precisei improvisar. Fui até o Gerson e disse: "Você quer ser meu amigo?" Foi com alívio que ouvi ele responder "nós já somos". E aí notei que eu tinha muito mais a aprender na escola, do que só português e matemática. Eu acabava de descobrir que amigos a gente não faz, a gente reconhece.

Bom, foram anos para que eu aprendesse mais até chegar ao ponto de abordar uma pessoa que nunca vi antes, para iniciar uma conversa. Essa é, basicamente, a arte de meu ofício. O jornalismo me obriga a conversar com desconhecidos como se isso fosse natural, e estabelecer uma relação de confiança ao primeiro encontro. Nem sempre funciona, e é algo que pode ser desfeito de forma acidental a qualquer momento. Mas essa é a tarefa.

Isso faz com que eu encontre, com frequência, pessoas a respeito de quem sei o ofício, conheço parte da história e, às vezes, lembre o nome. Por outro lado, a rotina à qual me prendi - tanto no trabalho como em casa - aliada ao meu péssimo hábito de não ingerir quase nada de bebida alcoólica, me fazem apenas observar os amigos, normalmente sem interagir com eles.

Hoje vi um deles. Eu havia parado no semáforo em frente ao shopping Palladium. Olhei no retrovisor e vi um rapaz de óculos de sol, que acabava de parar um Corsa atrás do meu carro. Tinha uma jovem ao seu lado, e mais algumas pessoas no banco de trás. Mas o olhar dele, oculto por detrás dos óculos escuros, estavam claramente presos ao semáforo.

Ele estava notando o mesmo que eu tinha percebido no dia anterior. E, com a mesma surpresa que manifestei na ocasião, ele chamou a atenção da companheira ao lado para mostrar que uma das lâmpadas do semáforo estava queimada, dando a ilusória impressão de que o sinaleiro ficaria verde em seguida, quando na verdade tinha acabado de ficar vermelho. Riu e gesticulou de forma divertida com as mãos, quando percebeu que a confusão ocorria por causa de um simples problema técnico. Por algum motivo, era algo engraçado.

O carro, com placas de Sengés, seguiu em direção a Uvaranas. Nunca vi o sujeito. Mas acredito que reconheci um amigo. Alguém que, como eu, ri de um semáforo, precisa ser boa pessoa. Ou não?

27 de nov. de 2018

Choque de realidade

Não é novidade para mim trabalhar no setor do jornalismo policial. Claro que não faço apenas isso, porque a editoria Cidades possui esse nome, justamente, devido à larga abrangência de temas que pode abordar. Mas as ocorrências envolvendo polícia, bombeiros e afins são bem comuns.

Já havia trabalhado escrevendo sobre homicídios, roubos, furtos, agressões antes, ao longo dos cerca de 10 anos de jornalismo diário. E achava que toda essa desgraça não me afetava, e que reportava o que acontecia com a frieza quase igual à do assassino que eu descrevia.

Fingia indiferença. Procurava imaginar que a cena de crime era tão falsa quanto aquelas mostradas no seriado CSI. Que um cadáver era um boneco, e não uma vida que tinha se desintegrado. Mas aí, não sei se devido à minha recente condição de pai ou devido ao acúmulo de experiências vividas nas reportagens, algo diferente ocorreu há algumas semanas.

Fui até um bairro da cidade onde um homem havia sido achado morto dentro de sua casa. Ele morava sozinho. Aparentemente, morte natural. Mas, fiquei chocado com o fato de que sua morte só foi percebida devido ao mau cheiro da decomposição de seu cadáver. O odor tomava conta de um quarteirão.

Não fiquei muito tempo no local. Peguei as informações principais. Voltei à redação. Mas fiquei pensando, em um misto de surpresa, orgulho profissional e tristeza, que eu conhecia o cheiro de um corpo de decomposição. E, de todas essas sensações, o que permaneceu foi a tristeza e uma espécie de choque com o qual convivi nos próximos dias.

Ao chegar em meu condomínio, no dia seguinte, após o expediente, senti novamente um cheiro forte, entre o amargo e o adocicado, e subitamente tive a certeza de que era o odor de um cadáver. Um dos moradores do prédio, dentre os quais alguns são sexagenários, devia ter falecido em seu apartamento. Como os vizinhos quase não se veem, podia ser qualquer um.

Comecei a suar frio e sentir taquicardia. Finalmente o mal que eu noticiava diariamente havia me seguido até minha casa. Logo o cheiro se tornaria insuportável. Alguém acionaria o síndico, uma das portas seria arrombada. A PM, o Samu, o IML... essa rotina que conheço bem acabaria passando diante dos olhos de minha filha de dois anos. Eu não queria isso.

Comentei por alto com minha esposa sobre esse receio, que me chamou de maluco. E devia ser maluquice mesmo, porque ela disse que o cheiro era de um bolo que havia queimado no forno de alguma cozinheira desatenta. Dormi preocupado, porque o cheiro ainda estava nos corredores do prédio quando saí para levar o lixo para fora.

No dia seguinte, pela manhã, eu ainda sentia o mau cheiro. Estava mais forte ou mais fraco? Eu não sabia. Mas as manhãs são mais frescas, seria normal se estivesse mais fraco. Quando, no final da tarde, notei que o cheiro praticamente havia desaparecido, ainda pensei que alguém poderia ter retirado o cadáver do local.

Não havia cadáver algum. Todos os vizinhos foram vistos caminhando, e bem, pelas escadas do prédio nos dias que se seguiram. Quem não estava bem era eu, que finalmente havia sido afetado pelos fatos terríveis que descrevo de forma genérica e objetiva nas páginas do jornal. Notícias que agora começam a me comover, chocar, entristecer, indignar. Após anos durante os quais tentei ser uma rocha, escrevendo sobre um pouco da face mais desumana da humanidade, parece que o cenário cenográfico do CSI enfim caiu. E atrás havia um cenário real.

1 de ago. de 2018

Por que o jornalismo ficou mais complicado?

Vou confessar aqui uma coisa: ser jornalista cansa!

Não me refiro ao trabalho maravilhoso de levar informação à população. Não falo da burocracia ou da dificuldade em localizar um ou outro entrevistado. Também não falo da necessidade de contar caracteres para compor cada espaço em uma página e assim facilitar a diagramação. Não reclamo de precisar agendar foto, de ter que ler todos os emails e mensagens em grupos de Whatsapp possíveis, de precisar replicar todo o conteúdo de impresso também em plataforma on-line e redes sociais.

Não me incomoda ter que acompanhar o desdobramento de reportagens antigas, checar denúncias da população sobre má administração pública, cobrar ação de autoridades. Nem sou afetado pela responsabilidade de checar quais palavras sofreram mudanças após o novo acordo ortográfico, ou seguir um manual de redação qualquer para manter o estilo editorial.

Também não é motivo de indignação o fato de precisar assistir a telejornais e ler tudo o que puder, mesmo fora de horário do expediente, para estar apto a discorrer sobre os mais variados assuntos em reportagens futuras. Nem me preocupo com a necessidade de ir a locais ermos e, por vezes, perigosos acompanhar perseguição a criminosos.

Não, porque tudo isso faz parte da profissão. A maioria desses itens eu já identificava nos tempos de faculdade. Outros surgiram com a natural evolução da atividade ou com minha chegada à editoria de Cidade/Polícia.



O que realmente me cansa, e faz com que eu respire com maior dificuldade, acorde menos disposto e durma com a mente cheia de preocupações, é que o jornalismo se tornou um espaço para que oportunistas se beneficiem de brechas, falhas ou naturais consequências, relacionadas ao exercício da profissão.

Os textos que publico são baseados sempre em relatos oficiais ou de testemunhas, documentos ou imagens. Ainda assim, as publicações estão sempre sujeitas a interpretações. E o fato de a Justiça no Brasil ser guiada por essas interpretações fez com que muitas pessoas se aproveitassem disso.

A consequência é que muitos leem o jornal procurando um indicativo de que foram, de alguma forma, prejudicados pela publicação. E basta que exista uma pequena centelha desse indício para que movam processo contra o jornal ou jornalista.

Um exemplo hipotético: a reportagem fala sobre o número de empregos ofertados no município, e a foto mostra o interior da agência do trabalhador. Em meio a tantas pessoas, um sujeito está segurando a carteira de trabalho. O detalhe é que ele não está desempregado. Estava trabalhando em uma empresa, e procurando uma nova oportunidade profissional. O patrão vê a foto no jornal do dia seguinte e chama o empregado. Diz que viu a foto e que, já que ele está procurando outra coisa, está demitido. Ele pode até processar o empregador por demití-lo injustamente. Mas o culpado de tudo, será o jornal, que publicou a foto geradora de sua demissão.

Parece absurdo, mas casos parecidos com esse são tão frequentes, que obrigam meu trabalho diário a omitir o nome da maioria das pessoas, evitar detalhe sobre endereços, não mencionar marcas de empresas, e ainda exige que rostos de pessoas, placas de carros e outdoors sejam cobertos com mosaico nas fotos a serem publicadas.

E isso cansa.

Cansa porque o jornalismo acarreta uma responsabilidade muito grande, por si só. E essas pessoas resolveram que são os jornais os motores de tudo de ruim que lhes acontece. Se não tivesse sido o jornal a publicar foto do empregado, mas sim um colega de trabalho traíra que o visse e tivesse contado isso ao patrão, ele processaria o sujeito?

Todos os dias, preciso pensar em consequências absurdas sobre cada nota policial publicada. Todo dia, preciso fazer isso em fração de segundos, já que o jornalismo diário não permite que eu pare e analise, junto com uma comissão de ética, o que pode e como pode ser publicado. E todos os dias, uma situação nova surge, independente de eu estar me precavendo sobre aquelas que possuem precedentes similares.

É como se eu tivesse um computador só pra usar o Word, mas mantivesse rodando os editores de vídeo e foto, realizasse vários downloads e abrisse várias abas de internet simultaneamente. Ok. Acabei de descrever meu computador na redação. Mas também é como funciona minha mente todos os dias. A diferença é que meu computador não suporta, superaquece e desliga sozinho duas a três vezes durante meu trabalho. Eu não tenho esse luxo.

"Ah, coitadinho dele. Quanto mimimi!", comentaria em tom irônico alguém que não sabe do que estou falando.

Estou falando de uma exaustão inerente não a uma empresa, nem a uma profissão, mas sim a alguns fatores que dificultaram a prática diária do jornalismo. Em especial: as redes sociais e maneira como aceleram os desdobramentos de uma reportagem; e a Justiça, que tem dado ganho de causa às pessoas que se dizem vítimas de publicações em jornais, desconsiderando as particularidades do jornalismo.

Não sei qual seria a solução para isso. Para que o jornalismo possa informar mais que ocultar informações. Não vejo como fazer isso. Só sei que a pergunta diária sobre como fazer isso cansa, e muito.

P.S.: Publico esse texto já preocupado com as consequências que me escapam.

10 de out. de 2017

Há tempo para tudo

Coloco a Melissa na cadeirinha do carro, sento no banco do motorista e giro a chave, dando a partida. Olho no console o papel que não se autodestruirá, mas aponta minha missão: Pagar a conta de luz.
"Vamos ao banco, Mel. Daqui a pouco estaremos de volta", digo, explicando a ela o motivo de sairmos da casa da avó.
O carro segue devagar. Mais devagar com a Melissa no banco de trás. Os cuidados se redobraram de forma natural após seu nascimento.
Estamos no Centro, a poucas quadras do banco, quando viro para trás e percebo que a Mel foi para o Mundo de Orfeu. Dorme tranquilamente, o queixo caído sobre o ombro direito. "Ideal seria ela dormir entre as 10h e as 11h, para aproveitar bem a tarde", recordo as palavras da pedagoga na primeira semana da Mel na escolinha.
Olho para o relógio. Está justo nesse intervalo. Vou tentar não pagar a conta com atraso, mas, dessa vez, o sono da pequena não irá atrasar. Estaciono o carro e deixo que durma. Mais tarde dou um jeito de pagar a conta. Esse soninho me acalma e me faz sentir um bom pai. Algo que torço para estar sendo todos os dias.

7 de jun. de 2017

As tragédias do dia a dia

Há pouco mais de uma semana acompanhei, de perto, um grave acidente ocorrido na BR-277, região de Balsa Nova. Seis pessoas morreram. Ontem, um acidente em circunstâncias, talvez, ainda mais trágicas, voltou a acontecer a pouco quilômetros do mesmo local. Dessa vez acompanhei de longe. Mas não é menos triste. De toda forma, faz parte do trabalho de repórter na editoria em que trabalho, que aglutina situações do cotidiano e fatos que normalmente estão em relatórios policiais e dos bombeiros.

Crédito: Fábio Matavelli
Minha esposa perguntou como consigo lidar com isso. Voltar para casa e viver a vida normalmente, mesmo presenciando e relatando o que há de pior e mais cruel na sociedade. Respondi que encaro como uma ficção. Finjo que estou descrevendo algo de que não faço parte. Não vejo outra forma de fazer isso sem entrar em parafuso.

Não quis detalhar, na reportagem de uma semana atrás, como as pessoas contaram ter visto um casal feliz, com uma menina de dois ou três anos comendo uma coxinha em uma lanchonete à beira da estrada, sem saber que, minutos depois, restaria viva apenas a criança, sem os pais. Nem detalhei, no texto que foi ao jornal nesta quarta-feira, como uma criança havia milagrosamente sobrevivido à colisão de um caminhão em meio ao engavetamento, e morreu atropelada assim que desceu do veículo.

Na verdade, acho que são justamente esses itens que os leitores querem ler. Talvez nem saibam, mas são esses detalhes mórbidos que buscam nas entrelinhas dos muitos caracteres que digito todos os dias. Mas evito dar esse gostinho a eles, porque não tenho a intenção de estimular esse desejo.

Escrevo, muitas vezes, sem entender para quê. Se foram seis óbitos ou um, que diferença irá fazer a não ser para os familiares das vítimas? Um caminhoneiro que dirige de forma imprudente todos os dias, vai ler minha matéria e pensar: "Nossa, que perigo, vou passar a dirigir de forma mais consciente a partir de agora"? Ou vai pensar: "É o tipo de coisa que acontece. Tenho que manter essa velocidade para chegar ao destino no horário. Não vou mudar em nada minha conduta"?

No final, a gente procura dar um alerta, e esperar que as autoridades façam algo. Melhorem sinalização ou condições de asfalto, coloquem redutor de velocidade... Mas, na maioria das vezes, é o leitor comum o protagonista desses textos trágicos, e que poderiam dar outro rumo às histórias. E aquelas com final feliz são cada vez mais raras em minha editoria.

A que mais gostei de escrever desde que iniciei na função, no início deste ano, foi do rapaz que possui deficiência em um dos braços, que caiu em um córrego em uma tarde de chuva intensa com granizo, e foi levado pela correnteza. Passou pelas galerias e por debaixo de uma rua, até que conseguiu se agarrar em galhos e gritar por socorro. Em meio a todo aquele barulho da chuva, quem ouviu foi uma mulher que passava de moto e que, mesmo usando capacete, percebeu os gritos e parou para ajudar o rapaz que se afogava a vários metros da via. Ela precisou caminhar pelo capim para descobrir que realmente tinha ouvido o pedido de ajuda. Avisou outras pessoas, que conseguiram cordas e tiraram o rapaz, exausto, das águas turbulentas. E ele viveu para contar essa história.

Que venham outras assim. Essas eu faço questão de lembrar que não são obras de ficção.

16 de jan. de 2017

Felipe é um cara legal

Felipe é um cara legal. Mas quase nada sei do Felipe. O pouco que sei demonstra que é um cara legal... Ele trabalha em um quiosque de venda de acessórios para celulares, no saguão de entrada de um dos supermercados da cidade. Passa o dia vendo pessoas irem e virem com sacolas de compras. A maioria não para, e nem percebe sua presença.

Essa rotina já se mantém há alguns meses, tempo suficiente para que Felipe tenha decidido que quer algo mais para sua vida, que esse é um serviço temporário, que provavelmente está fadado à extinção já que tudo que ele comercializa ali pode ser encontrado na internet, muitas vezes por preços menores.

Há duas semanas fui até seu quiosque procurando capa para meu novo smartphone. Como sempre, tonha comprado o aparelho mais barato que encontrei, que apenas oferecesse todas as funcionalidades principais exigidas pelo mundo ocidental contemporâneo. A consequência disso é que os acessórios são sempre difíceis de encontrar. O quiosque de Felipe era apenas mais uma tentativa, sem grandes expectativas.

- Boa tarde... Você tem capa para este aparelho? - perguntei

Felipe pegou o celular, fez uma rápida inspeção, e deu início a uma busca nas prateleiras nas quais acreditou que pudesse encontrar algo. Depois de cerca de um minuto, voltou de um compartimentos que parecia ser do estoque de coisas que, pensou, nunca venderia.

- Olha... pra não dizer que não tenho nada... tenho essa aqui. - estendeu uma capa preta brilhante, e já foi vestindo em meu aparelho, me entregando em seguida.
- Quanto custa?
- Vinte reais, mas eu faço por dez.

Diante de meu silêncio, pareceu decepcionado:

- O que foi? Não gostou do modelo?
- Ah, não é isso. Claro que se tivesse mais opções seria ideal, mas, é que não é pra mim. É pra minha esposa. Comprei um celular igual para ela. E não tenho certeza se ela vai gostar do modelo... Mas, eu vou fazer o seguinte, vou tirar uma foto dessa capa, envio para ela, e ela já me responde se gostou ou não.

Felipe fez cara de quem estava terminando de ter uma ideia. Fechou um pouco mais as pálpebras, enquanto me olhava, como se tentasse adivinhar minha reação diante das palavras que viriam a seguir. Então, com a decisão tomada, veio com essa:

- Faz o seguinte: leva pra ela de presente.
- Como assim?
- Pode levar. A vida é assim, um ciclo: a gente se encontra de novo, e um dia posso precisar de uma ajuda sua. Leva pra ela de graça.
- O-obrigado. - falei, ainda sem acreditar

Foi quando quis saber o nome do rapaz, cuja voz tinha uma entonação que parecia dizer sempre "não se preocupe, tudo vai dar certo", independente do que ele estivesse falando. Isso foi na primeira semana do ano, e me fez acreditar que as coisas tendem a melhorar. Que 2016, por mais difícil que tenha sido, pode estar fazendo as pessoas repensarem muitas coisas, talvez deixando questões materiais de lado. Que, a partir de 2017, uma nova era se inicia, com mais bondade nos corações, pessoas querendo fazer amizades e reconhecendo que vivemos na mesma bolha perdida no espaço. Me fez voltar a ter fé na humanidade, pôs um sorriso em meu coração.

Ou... Felipe é apenas um cara legal.

4 de ago. de 2016

Veio o pokémon!

Hoje aconteceu algo bem estranho aqui neste País... Foi disponibilizado um aplicativo de smartphone
chamado Pokémon Go. É uma espécie de game interativo, baseado num jogo já relativamente antigo e que deu nome ao desenho animado Pokémon.

Bom, o jogo já estava meio esquecido, mas aí veio esse aplicativo que, pelo que entendi, disponibiliza uma espécie de mapa via satélite que mostra onde você está e exibe, no local, uma criatura. Certo... acho que não consegui explicar direito.

Funciona assim... aquele que tem o aplicativo instalado em seu celular é avisado quando há um pokémon por perto. A câmera é acionada, e mostra o exato local onde o bicho virtual está. Aí, o cidadão precisa atirar bolas virtuais na criatura, até acertar e ganhar pontos.

Essa loucura tomou conta de muita gente, que está caminhando de olho no celular à procura desses seres. É tipo um vício... pior que whatsapp. E dá margem a frases absolutamente surreais, do tipo:

- A Prefeitura é um Centro de Treinamento Pokémon!
- Legal! Vou descer pelas escadas, pra ver se encontro um.
- Ontem eu fui dormir com um na minha cama. Acordei com outros dois. E agora... onde eu pego os ovos?!

Estou relutando a instalar isso em meu celular, até porque... um velho smartphone com sistema Symbian provavelmente não permite a instalação desse app. Mas sei que não posso ficar sem entender e interagir com essa novidade, porque hoje tenho uma filha com sete meses mas, daqui a pouco, ela cresce e a tecnologia à qual ela terá acesso será muito mais avançada que isso.

Então, é melhor ir aprendendo um pouco sobre tudo que vem surgindo, antes que as inovações evoluam mais rápido que minha compreensão acerca delas. Seguem os downloads...

10 de fev. de 2016

Velhinhas sequestradoras

Na segunda-feira, saí com minha esposa Priscila e nossa filha Melissa. A pequena, então com apenas um mês e dezessete dias, estava bem nervosinha e chorando bastante, talvez por causa do calor que fazia naquele dia. Quando a colocamos no carro, ela logo se acalmou... Dizem que o movimento e som do veículo lembram bastante o ambiente do útero, o que traz bastante calma a crianças pequenas.

Portanto, foi com tranquilidade que chegamos ao estacionamento do Shopping Antartica, pegamos o elevador, e descemos até o primeiro piso do edifício. O elevador abriu suas portas diante de uma cafeteria que eu não sabia que havia sido instalada ali [nossos passeios diminuíram bastante durante a gestação da Pri e, mais recentemente, com o nascimento da Mel].

Passamos ao lado das mesas de madeira onde algumas poucas pessoas lanchavam e saímos no saguão, entre as Lojas Americanas e o setor de moda masculina da C&A. Em meu colo, a pequena Melissa dormia tranquilamente, aparentemente sem se incomodar com a profusão de sons e cheiros totalmente inéditos que emanavam do Centro da cidade.

Ainda não tínhamos deixado o saguão do prédio, quando ouvi uma senhora já bem velhinha dizer algo como "Ah, meu Deus! Que pequenininha, que gracinha!" Tentei ignorar o comentário e acelerei o passo, mas então senti a mão da mulher em meu ombro, dizendo "deixa eu ver ela!". Eu nem tinha visto o rosto da mulher, mas reagi instantaneamente e respondi, sem pensar: "Não, não, não!", enquanto acelerava o passo, em tom de brincadeira. Só depois virei para encarar a velhinha que falou, de modo recriminatório, mas ainda sorrindo: "Malvado..."

Imediatamente compreendi que era uma dessas senhoras que não podem ver uma criança recém chegada ao mundo, e precisam olhar o bebê bem de perto, por uma razão que me escapa. Esse tipo de situação é quase sempre vista com simpatia ou indulgência, mas pode assustar um pouco. Ela arregalou os olhos diante da Melissa, que ainda dormia profundamente. Disse as coisas que todo mundo diz para minha filha (que ela é linda, perfeita, puxou aos pais etc) e, então, soltou essa confissão:

- Eu nunca tenho vontade de roubar nada na minha vida. Mas, criancinha pequena eu tenho vontade de roubar!

E aí quem arregalou os olhos fui eu! Como assim?! A mulher diz que quer roubar minha filha! Sorrisos amarelos surgiram, a senhora finalizou o encontro com um "Deus abençoe", e nós encerramos com um "amém" pronunciado simultaneamente por mim e minha esposa. A senhora seguiu seu rumo, nós seguimos o nosso. Tudo voltou ao normal.

Mas tenho apertado a Mel mais forte contra o peito, depois desse encontro bizarro, misto de benção sincera com ameaça de sequestro.

#SaiNazaré

22 de dez. de 2014

A importância do Chester Perdigão



A família está toda reunida. Estão todos diante de uma farta mesa: o filho, o pai, o avô, os tios, os primos... Eles manifestam a alegria de celebrar mais um Natal juntos. Então, entra na sala de jantar a última, e não menos importante, integrante da família: a mãe. Traz nas mãos o último item a compor a ceia: um frango assado.

Os demais querem saber, perplexos:"Onde está o chester?" A mãe responde que, desta vez, preferiu preparar um "frangão". O filho, de cerca de oito anos de idade, inventa uma desculpa. Diz que lembrou que tem um "campeonato de par ou ímpar" para participar na internet, e deixa seu lugar à mesa vazio.

Em seguida, o pai diz que lembrou que precisa ir a um evento de amigo secreto. "Que amigo secreto?", pergunta a mãe. "É secreto", diz, saindo da mesa, de um modo furtivo que se propõe cômico.

No momento seguinte, todos os outros vão embora e o último a deixar a casa, para surpresa da mãe que ainda segura o frango assado, é o Papai Noel. "Papai Noel... até você?", pergunta a mulher, não surpresa por ele estar ali, mas surpresa de estar indo embora. "Não, eu sou a Fada do Dente", responde o velhinho barbudo, antes de desaparecer diante de seus olhos.

Esse comercial ridículo termina com uma justificativa simplório e pouco criativa: "Natal tem que ter Chester que só a Perdigão tem". Ou, em outras palavras: "Natal não é Natal sem chester".

Não sou publicitário, mas sou um dos milhões de brasileiros que, muito provavelmente, já assistiu a esse comercial na televisão, desde que começou a ser veiculado na semana passada. E, como um humilde telespectador e potencial consumidor, me vejo obrigado a apontar quão estúpida é a ideia utilizada em sua formatação.

Natal é, atualmente, algo comercial. Não há como fugir disso. Claro que, historicamente, a proposta é recordar o nascimento de Jesus Cristo. Mas, no mundo contemporâneo, as lojas ficam muito mais lotadas do que as igrejas. Então, não serei hipócrita a ponto de dizer que esse comercial não deveria existir.

O chester em questão é da marca Perdigão. E a empresa tem todo o direito de dizer aos consumidores: "Ei, já que é tempo de reunir a família, saibam que existe nas gôndolas do supermercado o delicioso chester Perdigão". Em última análise, essa é a mensagem. Uma mensagem boa e útil, praticamente uma prestação de serviço. No entanto, esse comercial consegue fazer com que o chester se torne o vilão natalino.

A mãe, que provavelmente cuidou de toda a ceia, é quem fica sozinha ao final. A ausência do chester é motivo de dissolução familiar. E pai e filho optam por serem os primeiros a abandoná-la na noite que deveria ser de especial união.

Certamente, as pessoas que criaram essa peça publicitária estão dizendo que o chester da Perdigão é mais importante do que a família unida. E que a família espera pelo chester, e não pela mãe, que ainda não ocupou seu lugar à mesa.

Esse desastre da publicidade brasileira consegue inverter todos os valores que ainda restam nesta época do ano. O que é um chester perto da oportunidade de estar com a família reunida e feliz, diante de uma mesa já repleta de alimentos? Por vários anos passei o Natal ao lado de meus pais e meu irmão, tendo como principal item da refeição um frango assado. E eu jamais trocaria esse franguinho por um chester, se isso me custasse a presença dos três.

Por essa razão, fica aqui meu protesto contra um comercial que eu gostaria de esquecer, mas que acabo vendo, agora, todas as noites, em algum intervalo da programação da TV. E segue a solução para que seus criadores possam se redimir por desenvolverem essa aberração que, mesmo em tempos de elevado consumismo, consegue ser nojenta...

***

A mãe entra na sala de jantar trazendo nas mãos um frango assado.
- Ué mãe... cadê o chester? - pergunta o filho
- Neste ano, preferi fazer um frango assado. - diz a mãe, triste, porque obviamente também queria ter oferecido um chester.
Não vemos a expressão do restante da família, porque, no momento seguinte, toca a campainha. O pai abre a porta e encontra o Papai Noel. Nas mãos, o velhinho traz o Chester Perdigão.
Ao final, o Noel junta-se à família feliz, que compartilha o chester, e vemos o frango assado, também, sobre a mesa.
A frase final seria a seguinte: "O Natal fica muito melhor com o Chester Perdigão".

***

Percebe a diferença? Ninguém diz que o chester é mais importante que a união familiar, nem diminui a importância e dedicação da mãe por ter preparado um frango assado. O Chester é mostrado como um item importante, que tornará o Natal em família melhor, uma ideia que é endossada pela presença do Papai Noel à mesa.

Viu? O Natal sempre será comercial. Mas não precisa ser estúpido.

P.S.: Abram o vídeo na página do Youtube, e você verá que não sou o único indignado.

21 de out. de 2014

Resenha: 'O Fim da Infância'

Muitas pessoas tentam me convencer a ver filmes ou ler livros que dizem ser muito bons. No entanto, sou pouco influenciável nesse sentido. Evito ao máximo seguir os conselhos de meus amigos, e acabo fazendo pesquisas por conta própria, antes de me decidir por acatar o conselho de quem quer que seja. Quase sempre.

Isso faz com que eu seja um dos poucos caras em meu círculo social que não conhece, pessoalmente, obras populares entre os minimamente nerds, como é o caso de "2001: Uma Odisseia no Espaço". Até hoje não assisti ao filme, mas acho que agora terei que vê-lo. Meu amigo Ben-Hur Demeneck emprestou outro livro do mesmo autor, Arthur Clarke, e me convenceu de que o sujeito, que morreu há poucos anos, era um gênio.

A obra "O Fim da Infância", cuja leitura encerrei há poucos dias, é única. Depois dela, muitas outras surgiram, certamente tendo se baseado, ao menos em parte, em seu conteúdo. Impossível iniciar a leitura da descrição da chegada de gigantes naves alienígenas à Terra, sem relacionar a história ao filme "Independence Day". Não há como acompanhar a interferência, aparentemente, benéfica dos invasores sem lembrar do seriado "V", que há pouco era exibido na televisão.

Essas referências diminuiriam o impacto da obra de Clarke, se não considerássemos que ele escreveu seu livro no início da década de 1950. Nem sequer o primeiro satélite artificial estava em órbita ainda. O homem só pisaria sobre solo lunar na década seguinte. Por isso, ler "O Fim da Infância" é como ter a oportunidade de encontrar com uma das primeiras obras de real influência em toda a safra de obras de ficção científica relacionada a ETs que veio nos anos seguintes.

Muito mais que isso, o livro faz uma brilhante abordagem filosófica a respeito do homem, daquilo que o faz sentir-se importante e único no Universo. A narrativa mostra uma raça de seres - "Senhores Supremos" - que vem à Terra oferecendo prosperidade, avanços tecnológicos e de conhecimento. Aparentemente, nunca fazem o mal, mas despertam a curiosidade de muitos. Isso porque jamais mostram sua aparência física, nem revelam os reais motivos que os trouxeram ao planeta azul.

Cinqüenta anos após estarem no convívio do homem, conforme prometido, eles mostram seus rostos. Geram dúvidas devido à sua aparência bizarra (se bem que familiar), mas todos os homens já estão bastante habituados com sua presença, e acostumados à interferência benéfica que exerceram nos últimos anos.

Em paralelo, um homem consegue viajar clandestinamente na nave alienígena, até o planeta de origem dos visitantes, para tentar saber mais a respeito deles. Ao voltar, viajando na velocidade da luz, encontra uma Terra 80 anos mais velha, e totalmente mudada.

Seria um grande erro revelar aqui os detalhes minuciosos que tornam o livro tão espetacular. Mas basta saber que ele é convincente. Que tudo que parece acaso, ao final, se revela repleto de sentido. Que a viagem pelo espaço descrita na obra obedece ao que se sabe a respeito da física astronômica, e se mantém atual, mais de 60 anos após sua publicação.

E que, em determinado momento, nos surpreende saber que a cozinha descrita como do futuro teria um item bastante popular chamado "forno de radar". O que significa que Clarke previu até mesmo a popularização dos fornos microondas, que só se tornaram realmente utilizáveis após década de 1970. Ler "O Fim da Infância" faz pensar sobre tecnologia, humanidade e até paranormalidade. E nos mostra que muita coisa evoluiu em nosso mundinho, mas a boa ficção científica atual engatinha, quando a comparamos com a obra de Arthur C. Clarke.

17 de ago. de 2014

Um furo de 20 mil livros

Estava aqui relembrando uma matéria que escrevi há alguns anos, e que foi uma das que mais tiveram repercussão. Em conversa com uma funcionária do Departamento de Cultura da Prefeitura de Ponta Grossa, soube que uma porção de livros da biblioteca pública precisariam ser incinerados, porque tinham sido contaminados por fungos, devido ao armazenamento inadequado.

"Quantos livros?", perguntei. Mas não esperava que a resposta seria tão bombástica. "Vinte mil."

Foi um grande furo, nenhum outro veículo de comunicação sabia daquela informação, que ganhou a capa do Jornal da Manhã e, no dia seguinte, começou a ser replicada em todos os importantes sites, jornais e emissoras de TV.

Mais tarde, ainda suitei a matéria, com a surpreendente informação de que os livros contaminados haviam sido armazenados no mesmo galpão com os alimentos do Programa Mercado da Família, enquanto esperavam para serem queimados. Me infiltrei nesse galpão e levei o fotógrafo até o local onde os livros estava armazenados. Dessa vez, tivemos uma foto exclusiva, e reportagens exemplares cobrando ações mais cuidadosas com itens de uso geral da população.

[A matéria original pode ser lida na íntegra, clicando aqui]


23 de jul. de 2014

Devagar. Soberba passando...

Tem dias em que tudo o que a gente precisa ouvir é um pedido de desculpas. E isso está cada dia mais difícil de acontecer. Os motivos são vários, mas acredito que o principal é o crescimento da soberba no ambiente social. O cenário em que isso é mais visível é o trânsito. Não é à toa que motoristas param os carros para promover acaloradas discussões que, em momentos extremos, levam a verdadeiros campeonatos de UFC, ou duelos de faroeste em que apenas um carrega arma de fogo, cujo final trágico já é previsível.

Observe ao redor, e observe em si mesmo. O que acontece quando você quase bate o carro, em um momento de distração? Primeiro, você culpa o outro motorista. Dificilmente você irá avaliar quem está errado. De imediato, você é quem está certo, e o outro errado. A razão não importa mais no trânsito.

Ontem estacionei um instante em frente à Catedral da cidade. Enquanto colocava o cartão de EstaR sobre o painel, senti o carro sacudir e descobri que um senhor que estacionava à minha frente acabava de esbarrar no pára-choque de meu automóvel. Gesticulei, dei uma buzinada, saí do carro e esperei ele terminar de estacionar para conversarmos. Na realidade, eu só queria ouvir um pedido de desculpas, pois o dia já estava sendo suficientemente difícil.

A vaga em que ele estacionava era a vaga de idoso. Totalmente justo, considerando sua idade e o cartão de identificação no painel de seu carro. O detalhe é que o carro dele era um compacto, e na vaga caberia uma camionete dessas que obrigam a gente a pegar impulso para entrar. Havia um metro sobrando à frente e, ainda assim, o cidadão bate no meu para-choque.

Ao invés de se desculpar, ele atentou para o fato de que meu para-choque havia "invadido" seu espaço de idoso, o que lhe dava o direito de colidir com meu carro. De fato, meu carro tinha adentrado cerca de 30 centímetros na vaga de idoso. Pelo tom de voz e estupidez com que o cidadão me respondeu, acabei por dizer que ele era grosseiro [odeio esse hábito de não ter bons palavrões à disposição].

Ele foi embora abandonando o que poderia ter sido uma discussão longa e infrutífera. Em seguida refleti, ao ver que o carro dele estava cheio de marcas e arranhões, que sua idade já não permitia que ele dirigisse com a destreza de outras épocas, talvez. Ponderei que o dia dele podia estar sendo pior que o meu. E terminei por recuar um pouco meu carro, dando ao compacto do idoso todo o espaço que ele precisasse para sair da vaga depois.

Todavia, o desenrolar do diálogo poderia ter sido outro, se ele apenas se desculpasse por ter encostado em meu carro. Como ele mesmo disse em tom de desaforo, "nem tinha ofendido" meu automóvel. Então, qual seria o problema de apenas pedir desculpas pela atitude? Se ele tivesse feito isso, eu pediria desculpas também, pois acabava de notar que tinha avançado um pouco na sua vaga. Nos cumprimentaríamos, eu recuaria um pouco meu carro, feliz pelo desfecho da conversa na qual ambos notariam suas falhas. Ao invés disso, cada um quis provar que estava certo.

O pedido de desculpas é cada vez mais raro, não simplesmente porque as pessoas estão mal educadas, mas porque estão se achando superiores. E pedir perdão, ainda que em situações pequenas como essa, seria um atestado de inferioridade, quando deveria ser de igualdade. Todos erramos.

É por isso que há quem dirija em meio a duas faixas da via, quem acelera para passar no sinal amarelo, quem ultrapassa pela direita etc. O trânsito é o maior exemplo de como umas pessoas se sentem, cada vez mais, superiores às outras. Se elas são, então que saibam agir como tais. Mas, quem vai começar a mudança de atitude? Quem terá a coragem de ser superior, parecendo inferior aos olhos dos demais? Dar prioridade ao pedestre irá mudar alguma coisa? Tenho esperança que sim, mas com cada vez menos convicção, infelizmente.

21 de jul. de 2014

Entrando numa [água] fria

É verdade que ainda sou um grande fã do simples ato de, no fim de semana, ficar em casa vendo um filme e comendo um pacote de Doritos. Mas, com uma certa frequência e um pouco de dinheiro no bolso, minha esposa acaba me convencendo a fazer pequenas ou médias viagens, muitas delas desbravadoras. Quase todas acarretam uma grande descoberta ou aventura inesquecível. Como da última vez, em que mal chegamos ao local, no Distrito de Entre Rios, em Guarapuava, e tive as pernas abocanhadas por um cachorro dos infernos.

Dessa vez, decidido a nos oferecer um passeio mais tranquilo, fiz uma busca na internet, e optei por uma pousada chamada Recanto da Dora, na região de Tibagi. Um passeio de um dia. Sairíamos na manhã de domingo, para voltar no final da tarde. O site mostrava trilhas para caminhadas, que terminavam em belas cachoeiras. Se gostássemos, podíamos agendar para uma próxima oportunidade um passeio mais extenso, com cavalgadas ou caminhadas acompanhadas de guia. Até mesmo as cachoeiras não poderiam ser muito aproveitadas desta vez, por estarmos em pleno inverno. A manhã de domingo previa iniciar com apenas 3ºC.


Feita a reserva por e-mail, partimos rumo a Tibagi, em deslocamento sossegado que desembocou na rodovia PR-340, quando chegamos ao portal de entrada do Parque Estadual do Guartelá.

Os planos mudam na chegada

Ali, um guia chamado Manoel acabou nos convencendo a não passar pelo portal. É que ele próprio tinha uma série de atrativos no entorno da região, e acabei achando que o Recanto não exerceria tanto fascínio quanto alguns dos roteiros que ele nos apresentou.

Assim, optamos por seguir duas de suas sugestões. A primeira delas era uma trilha que começava ali mesmo, não exigia a presença de guia, e dava a possibilidade de uma boa caminhada a dois. A segunda era denominada "Trilha da Fenda", e prometia a visualização de um cenário fantástico, a julgar pelas fotos que mostravam grande paredões de pedra.

Munidos de uma garrafa de água e um pacote de Ruffles [o Doritos não coube na mochila], eu e a Pri iniciamos o trajeto, que circundava lavoura para, ao final, levar a belas cachoeiras. Apesar de eu não ter planejado caminhar sobre as águas geladas naquela manhã fria, Manoel avisou que, em pelo menos um trecho, teríamos que molhar os pés para atravessar. Como [quase] diz o ditado: "quem está na trilha é pra se molhar". Só não pensei que seria logo no começo.

Pra que complicar?

Assim que chegamos à primeira bifurcação, a Pri quis passar por um banhado do lado esquerdo, enquanto eu acreditava que a trilha devia seguir pela bela estrada do lado direito. Houve uma pequena discussão, e devíamos ter disputado no palito, pois talvez eu tivesse alguma chance. Como não deixamos a escolha a cargo da sorte, acabei cedendo a sugestão de minha companheira, ao considerar o comentário do guia, que havia alertado para a necessidade de molhar os pés.

Acho que eu não estava com as roupas mais adequadas...
Na cara e coragem, Priscila enfiou as botas na lama [aqui vale um adendo: esse par de botas foi levado, certa vez, para que um sapateiro arrumasse a sola que estava soltando. O sapateiro quase se recusou a fazer o conserto, dizendo que, em dias úmidos, era preferível que a Pri andasse descalça, tal era a qualidade do material]... Como eu dizia, a Pri enfiou as botas na lama, e logo sentiu a água gelada. Caminhou por cerca de 10 metros, e me esperou do outro lado, em terra firme.

Ainda parado, eu criava coragem para a caminhada sobre aquele lodo congelante. Então, decidi congelar meus pensamentos, indo em frente, e fazendo de conta que aquilo era a coisa mais natural, e que casais do mundo inteiro sempre escolhiam aproveitar domingos de inverno enchendo os sapatos de água gelada. Palavras não serão capazes de descrever a experiência. Basta dizer que eu cheguei do outro lado e, ao encontrar a Pri, tive que ouvi-la dizer. "É... acho que não é por aqui". E assim, voltamos por aquele lodo, para enfim seguirmos pelo trajeto seco que eu antes havia sugerido. Que sirva de lição... preciso confiar mais em meus palpites.

A beleza das Sete Quedas

A partir dali, a coisa foi mais tranquila. Trilhas abertas, solo de rocha, placas sinalizando, paisagem deslumbrante. Na parte mais alta, curiosas formações de pedra. Na parte mais baixa, a água que escorria formando belas cachoeiras, que dão nome à "Trilha das Sete Quedas". Aliás, no verão seria ótimo retornar ao local. Em dia quente, certamente um dinheiro bem gasto. Há pequenas "piscinas" de água cristalina, com a opção de chão de pedra ou de areia. Lugar limpo que, espero, permaneça com pouca intervenção negativa do homem.

Verão, venha logo...
Após cerca de duas horas de caminhada, por entre as águas limpas dos córregos, subimos novamente o relevo acidentado e voltamos ao ponto de partida. Um breve descanso no local revelou que o passeio pela Trilha da Fenda teria mais turistas. Um grupo de Maringá e uma moradora de Tibagi nos acompanhariam. Até mesmo um guia local chamado Zezinho iria conosco, pois ainda não tinha visto a tal fenda.

Soubemos, então, que aquele passeio era algo recente na região. Poucas pessoas haviam conhecido a beleza que estávamos para registrar com nossos olhos. De carro, voltamos pela rodovia por cerca de 15 quilômetros e entramos em propriedade particular. A empresa de turismo de Manoel tem autorização do proprietário para a visitação, mediante documento entregue na entrada. Segundo Manoel, foi preciso convencer o homem a permitir as visitas, o que só aconteceu há cerca de quatro meses.

Um cenário de Hollywood

Deixamos os carros diante de uma plantação, e adentramos a mata por uma trilha de dificuldade mediana. Após cerca de sete minutos, com a temperatura caindo gradativamente, chegamos ao que parecia ser a entrada de uma gruta. Um portal de pedra, se abria diante de nós. Ao chão, uma pedra chata parecia ser uma porta recém derrubada. E, passando ao lado desta rocha, o que se via era um cenário comparável somente a grandes produções de cinema.

Lembrei das paredes rochosas do final do filme 'Indiana Jones e a Última Cruzada'. Só que estava ali, bem diante de nós, em linha reta. O solo era arenoso e as paredes de rocha vertical, com cerca de 10 a 12 metros de altura. Entre essas paredes, não havia mais do que um metro e meio. No alto, grandes rochas se equilibravam, suspensas, como que desafiando a coragem dos "desbravadores".

E nós? A maravilha da visão contrastava com o frio que sentíamos. Frio esse que só aumentaria nos próximo minutos. A fenda por onde caminhávamos se estendia por diversos metros, em uma visão extraordinária. Infelizmente, minha câmera não era das melhores para aquele registro, pois a luminosidade era reduzida e já era final de tarde.

Avançando pelo estreito caminho, chegamos às parte parcialmente inundadas pelas águas que escorriam dos paredões. A cada centena de metros, havia como que um degrau que nos fazia descer e a água subir. Por entre as pedras escorregadias, o lodo do fundo do córrego e os galhos e cipós que se entrelaçavam à nossa frente, nós seguíamos pelo túnel. Admirados pela maestria com que a natureza havia "construído" aquele cenário, certamente há milhões de anos, nós nos equilibrávamos já sem sentir os pés.

No trecho mais profundo, a água chegou às minhas coxas, e a Pri subiu as minhas costas. A dificuldade de descer as pedras que formavam degraus era cada vez maior, até que chegamos a um local em que a trilha se afunilava e conduzia os caminhantes à escuridão. O guia explicou que o trajeto ali era um pouco mais exigente. Ali, a Pri preferiu voltar (pois a saída era pelo mesmo trajeto). Foi quando me dei conta de que o regresso era um pouco mais desafiador do que a entrada.

O guia e os outros turistas seguiram em frente, enquanto eu e a Pri voltávamos pelo caminho de onde tínhamos vindo. Dessa vez, não era possível pular do alto de rochas para as parte inundadas. Era preciso pequenas escaladas na pedra escorregadia. Isso obrigou a colocar a Pri em meus ombros, para que ela pudesse alcançar o degrau mais alto.

Em uma dessas muitas pedras lisas, a Pri não encontrou apoio, e acabou se molhando um pouco mais. Foi mais ou menos deste jeito:



Ela só conseguiu subir quando eu a segurei e gritei: "Se acalme!"

Ainda assim, a volta é sempre mais rápida que a ida. Chegamos ao carro um pouco cansados e muito sujos. Satisfeitos com a beleza do passeio, e do local que tivemos o privilégio de conhecer, mas desejando ter vindo em época mais quente, e talvez com mais algumas roupas no carro.

Dez minutos depois, o guia e os demais turistas tinham voltado. Dali, ainda seguimos até uma cachoeira muito bonita, também dentro da fazenda. Segundo Manoel, as águas da cachoeira marcam a divisa entre Castro e Tibagi.

Regressamos a Ponta Grossa em seguida, vendo o sol se pôr, e deixando para trás uma visão inesquecível das belezas que a região dos Campos Gerais tem a oferecer.

Há quem diga que não é preciso viajar ao exterior para conhecer muitas dos espetaculares cenários do Mundo, pois o Brasil já oferece diversas dessas maravilhas. E não é demagogia. Apenas para citar outro caso, o Acre, um dos estados brasileiros menos conhecidos (talvez devido à distância extrema do litoral), foi tema de reportagem interessante a respeito de extraordinárias figuras descobertas recentemente em seu solo. Os chamados "geolitos" só podem ser vistas do alto, da mesma forma que as linhas de Nazca, no Peru, e ainda são tão misteriosos quanto pouco conhecidos.



Da mesma forma, a Trilha da Fenda é um local que, certamente, poucos conhecem ou ouviram falar. Cenário fantástico localizado a poucos quilômetros de Ponta Grossa, e que vale a pena conhecer.

Mais informações:

Distância aproximada: 85 quilômetros de Ponta Grossa à entrada do Parque Estadual do Guartelá
Melhor época para visitação: verão... certamente o verão
Roupas: Qualquer sapato ficará molhado e cheio de lama. Alguns turistas preferem caminhar trechos descalços, mas os gravetos no fundo do córrego incomodam. Então... leve roupas de banho, roupas leves e calçados apropriados para a caminhada. Água, lanche para trilha, repelente, filtro solar, boné e sacola plástica para armazenar as roupas de banho.
Taxa de visitação: R$ 25 por pessoa na primeira trilha, sem guia. A Trilha da Fenda exige R$ 50 por pessoa, o que inclui a presença do guia e a autorização do proprietário para entrar na fazenda. *Valores em julho de 2014
Empresa que conduziu a visitação: Itaimbé do Guartelá Ecoturismo

17 de jun. de 2014

Voluntários na Copa

A manhã é de neblina em Ponta Grossa. Os automóveis passam com faróis acesos e bandeirinhas do Brasil tremulando. É o anúncio de mais um dia de jogo do Brasil em meio a uma Copa do Mundo realizada no País. A névoa vai se dissipando, e o centro da cidade começa a ficar povoado. Menos do que nos outros dias, pois dia de Brasil na Copa é feriado para muitas pessoas.

O café também tem movimentação reduzida, o que é bom para garantir conforto a quem tem o hábito de frequentar o lugar. Basicamente duas mesas circulares para duas pessoas, e três ou quatro banquetas junto ao balcão. Uma clientela um pouco maior exigiria que os visitantes excedentes ficassem em pé equilibrando xícara e pires.

Dois advogados entram. Um deles pede um café e um salgado qualquer. O outro, mais baixo e mais falante, pede um café com leite e um pão de queijo. Sentam-se à mesa. O televisor exibe as notícias do dia. O nevoeiro também cobriu toda a cidade do Rio de Janeiro. A bela paisagem também significou o cancelamento de pousos e decolagens lá e em outros pontos do País.

Assim que as nuvens baixas deixam de ser foco principal da reportagem, a Copa do Mundo, assunto do momento em todos os lugares, volta a ser o destaque no programa. E aí o advogado mais baixo começa a falar:

"Sabe o que eu fico mais impressionado? O País precisando de investimentos em saúde e educação, e milhões sendo investidos nesta Copa. Até aí tudo bem... Mas eu não entendo como é que tem um monte de brasileiro que aceita ser voluntário na Copa. Voluntário! Trabalhar de graça por isso?"

Penso a respeito. E recordo que muitos brasileiros só queriam estar perto desses eventos, assistir a um jogo no estádio, ver a movimentação de estrangeiros, poder dizer que fizeram parte de tudo isso um dia. Talvez alguns brasileiros se deixem explorar, ao perceber que essa é a única forma de conseguirem atingir determinados sonhos. Justifica? Não sei, mas com certeza explica como muita coisa acontece.

5 de jan. de 2014

Viagem a Treze Tílias - SC

A Pri na Praça central de Treze Tílias
Nos últimos dias de 2013, eu e minha esposa Priscila concordamos em fazer nova viagem, recarregar as baterias conhecendo novos lugares. Dessa vez, a escolha do destino aconteceu após a visita à casa de uma amiga, que narrou uma viagem incrível que tinha feito até um lugar chamado Treze Tílias, em Santa Catarina.

O nome pode soar estranho para a maioria das pessoas, mas trata-se de uma cidade com um potencial turístico impressionante, que é aplicado na prática de forma exemplar. O passeio, que ainda incluiria passagem pela Serra do Rio do Rastro (uma impressionante estrada que atravessa montanhas) e finalizaria no litoral, em Balneário Camboriú.

A Pri começava a selecionar hotéis e pousadas, quando tivemos a ideia de convidar nossos amigos Robison e Soraya para que nos acompanhassem. Aceitaram a sugestão, e partimos na manhã de domingo, dia 29 de dezembro de 2013, planejando passar o Réveillon na praia.
Flores que decoram a praça da cidade
Seguimos pela rodovia que corta o Distrito de Guaragi, cada casal em seu veículo, em direção a Teixeira Soares, Irati e Mallet, até cruzarmos a divisa com Santa Catarina. Após algumas horas paramos em uma lanchonete à beira da estrada, que acabava de abrir suas portas para os clientes. Tomamos um café, e comemos salgados que estavam muito bons.

De volta à rodovia, seguíamos o carro do Robison e Soraya, que estava com um equipamento de GPS aparentemente mais aprimorado que o modesto aplicativo de meu celular. O tempo variava entre sol, chuvisco e neblina. Passava das 13 horas quando nos vimos em uma rodovia sem qualquer indicação confiável da chegada a Treze Tílias. Sabíamos estar perto, mas tudo que víamos eram morros e campos, sem nenhum sinal de habitação.

Finalmente, por volta das 13h30, surgiu a cidade, como num passe de mágica, por detrás dos morros verdes. O momento coincidia com o surgimento mais intenso do sol, e nos fez ver ruas limpas, casas de arquitetura característica europeia, jardins bem cuidados e a tranquilidade de um município com
aproximadamente 6 mil habitantes.

Cascata artificial que corta a praça da igreja matriz
Treze Tílias é uma cidadezinha simpática e acolhedora, fundada por imigrantes austríacos. Isso fica evidente na arquitetura, na decoração de hotéis, ruas e restaurantes, nos gentílicos, que gostam de falar em alemão entre si. Os funcionários de alguns restaurantes usam roupas típicas, e os nomes de ruas e estabelecimentos, com frequência, têm mais consoantes que vogais.

O nome da cidade é uma referência a um poema de mesmo nome (Die Dreizehnlinden), do poeta alemão Wilhelm Weber. A Tília é uma árvore de origem do Hemisfério Norte, que foi posteriormente trazida e plantada no município. Inclusive, há um parque que possui caminho com treze tílias saudando a passagem do visitante.

Outra marca do município, talvez a principal, é a Edelweiss. Uma flor branca existente nos Alpes, apelidada
de "Flor do Amor", pois diz a tradição que a flor nunca morre ou mancha, mesmo após colhida. Em quiosques de souvenires há várias dessas flores, em vários tamanhos, colocadas em molduras para venda.

'Castelino' - museu da imigração
Quando chegamos, precisamos ignorar o GPS, que não tinha informação a respeito da rua onde ficava nossa pousada. Mas, bastou circular um pouco de carro para encontrarmos um ponto de informações turísticas. No local, soubemos que as esculturas de madeira são outra marca do município, que tem diversos artesãos. A recepcionista, atenciosa, ofereceu alguns panfletos e mapas, informou como chegar à pousada e a restaurantes, deu ao Robison um almanaque muito bonito com várias informações sobre o município, e nos convidou a assistir a um vídeo de sete minutos que conta um pouco do que a cidade tem a oferecer aos visitantes.

De lá, seguimos a um restaurante para almoçar, e depois fomos à pousada. No caminho, nos maravilhávamos com a arquitetura nas ruas principais. A Pousada Adler é, talvez, uma das mais simples que existem no lugar. A estrutura é razoável, mas o atendimento deixou a desejar. A recepcionista foi bastante brusca, ao informar que o local só abriria às 14 horas. Mais tarde, disse não ter recebido o comprovante de pagamento via e-mail (o qual enviamos com bastante antecedência, além de ter feito o pagamento na íntegra, quando era solicitado apenas 50%).

A cidade é representada em maquete
O Robison e a Soraya ficaram hospedados num quarto que ficava ao lado de uma cama elástica, onde crianças pularam até altas horas da noite. A piscina estava cheia de insetos no fundo (o que não nos impediu de tomar um banho hehehehe) e o café da manhã não impressionou.

Apesar disso, a cidade toda é bonita demais, de tem dezenas de atrativos turísticos. Tivemos que escolher alguns, já que ficaríamos apenas um dia. Visitamos o Museu da Imigração Austríaca, mais conhecido como "Castelinho", que foi a residência do fundador da cidade. Fomos ao Parque Lindendorf, que tem um lago com grandes peixes coloridos, uma trilha com pequeno zoológico, a cidade de Treze Tílias representada em miniatura, além de um restaurante muito agradável. Em um quiosque, compramos algumas lembranças. Ao sairmos, um músico tocava acordeom animadamente.

O tempo colaborava bastante conosco. Fazia um sol de rachar e, de vez em quando, para amenizar o calor, caía uma garoa. Em Treze Tílias também fomos ao Parque dos Sonhos, onde nos divertimos em um labirinto de árvores, cujo objetivo era chegar ao centro. Mas não nos aventuramos em uma fila enorme de pessoas para comprar sorvete.

Gente simpática e música típica no Parque Lindendorf
Mas nada no município se compara à praça central, habilmente ornamentada com flores e uma cascata artificial que desce por degraus desde a Catedral até a um pequeno lago. A Praça foi, nitidamente, planejada para ser o cartão postal no centro da cidade. Por ser época de Natal, o local também estava cheio de enfeites, com luzes que tornavam o espaço especialmente importante para visitação à noite.

Ainda na manhã de segunda-feira, dia 30, partimos de Treze Tílias, guiados pelo GPS rumo ao lar do lendário Corvo Albino. Mas essa é outra parte da história...

6 de nov. de 2013

O Especialista

Semana passada acordei e, ao sentar na cama, percebi uma sensação incômoda no ouvido direito. Reparei que o sintoma surgia cada vez que eu me levantava ou abaixava. Comecei a recuperar meu histórico de enfermidades que, felizmente, [ainda] é reduzido, e julguei que poderia ser indicativo de que minha sinusite alérgica estava de volta.

É que, há quase dois meses, peguei um resfriado nos primeiros dias de minhas férias. Tratei com xaropes e ignorância, e acabei julgando estar curado. Mas, agora, observando sintomas, notei outros problemas. A começar pelo número exagerado de vezes que passei a assoar o nariz, crises de espirro diárias e sensação de congestão nasal.

Somado a isso, meus óculos pareciam comprimir os seios (ui!) da face na região do nariz, justo o local normalmente afetado pela sinusite. E imaginei que estava um pouco inchado, indicando inflamação.

Sem alternativa, e tendo adiado isso por quase 60 dias, precisei ir ao médico nessa terça-feira. Mas, diante de um dos melhores especialistas em pneumologia da cidade (o mesmo que diagnosticou minha sinusite dois anos antes) me senti ainda mais ignorante. Na verdade, a consulta foi humilhante, aviltante, degradante.

O médico perguntou quais sintomas eu tinha, e narrei basicamente o que está descrito aqui nos primeiros parágrafos. Foi quando ele iniciou os exames. O primeiro deles, no ouvido. Primeiro o esquerdo, depois o direito. "Aqui você não tem nada. Só um pouco mais de cerume no ouvido direito", disse, sendo educado para não falar que meu ouvido estava quase entupido de cera.

Depois, sobre os óculos estarem apertando a região do meu nariz, ele disse: "Me empresta seus óculos". Pegou e, entortando a peça que apoia o óculos sobre o nariz [chamada "ponte"], abriu um pouco, deixando mais folgada. "Melhorou?"

Claro que depois, ele receitou um hemograma e um raio-x dos seios da face. E é muito provável que depois disso venha a apresentar um diagnóstico bastante preciso, como ocorreu dois anos atrás. 

Mas saí do consultório me sentindo bastante tolo, e duzentos reais mais pobre.

Às vezes eu queria ser mais especialista e menos ignorante no que tange à medicina.