10 de out. de 2017

Há tempo para tudo

Coloco a Melissa na cadeirinha do carro, sento no banco do motorista e giro a chave, dando a partida. Olho no console o papel que não se autodestruirá, mas aponta minha missão: Pagar a conta de luz.
"Vamos ao banco, Mel. Daqui a pouco estaremos de volta", digo, explicando a ela o motivo de sairmos da casa da avó.
O carro segue devagar. Mais devagar com a Melissa no banco de trás. Os cuidados se redobraram de forma natural após seu nascimento.
Estamos no Centro, a poucas quadras do banco, quando viro para trás e percebo que a Mel foi para o Mundo de Orfeu. Dorme tranquilamente, o queixo caído sobre o ombro direito. "Ideal seria ela dormir entre as 10h e as 11h, para aproveitar bem a tarde", recordo as palavras da pedagoga na primeira semana da Mel na escolinha.
Olho para o relógio. Está justo nesse intervalo. Vou tentar não pagar a conta com atraso, mas, dessa vez, o sono da pequena não irá atrasar. Estaciono o carro e deixo que durma. Mais tarde dou um jeito de pagar a conta. Esse soninho me acalma e me faz sentir um bom pai. Algo que torço para estar sendo todos os dias.

7 de jun. de 2017

As tragédias do dia a dia

Há pouco mais de uma semana acompanhei, de perto, um grave acidente ocorrido na BR-277, região de Balsa Nova. Seis pessoas morreram. Ontem, um acidente em circunstâncias, talvez, ainda mais trágicas, voltou a acontecer a pouco quilômetros do mesmo local. Dessa vez acompanhei de longe. Mas não é menos triste. De toda forma, faz parte do trabalho de repórter na editoria em que trabalho, que aglutina situações do cotidiano e fatos que normalmente estão em relatórios policiais e dos bombeiros.

Crédito: Fábio Matavelli
Minha esposa perguntou como consigo lidar com isso. Voltar para casa e viver a vida normalmente, mesmo presenciando e relatando o que há de pior e mais cruel na sociedade. Respondi que encaro como uma ficção. Finjo que estou descrevendo algo de que não faço parte. Não vejo outra forma de fazer isso sem entrar em parafuso.

Não quis detalhar, na reportagem de uma semana atrás, como as pessoas contaram ter visto um casal feliz, com uma menina de dois ou três anos comendo uma coxinha em uma lanchonete à beira da estrada, sem saber que, minutos depois, restaria viva apenas a criança, sem os pais. Nem detalhei, no texto que foi ao jornal nesta quarta-feira, como uma criança havia milagrosamente sobrevivido à colisão de um caminhão em meio ao engavetamento, e morreu atropelada assim que desceu do veículo.

Na verdade, acho que são justamente esses itens que os leitores querem ler. Talvez nem saibam, mas são esses detalhes mórbidos que buscam nas entrelinhas dos muitos caracteres que digito todos os dias. Mas evito dar esse gostinho a eles, porque não tenho a intenção de estimular esse desejo.

Escrevo, muitas vezes, sem entender para quê. Se foram seis óbitos ou um, que diferença irá fazer a não ser para os familiares das vítimas? Um caminhoneiro que dirige de forma imprudente todos os dias, vai ler minha matéria e pensar: "Nossa, que perigo, vou passar a dirigir de forma mais consciente a partir de agora"? Ou vai pensar: "É o tipo de coisa que acontece. Tenho que manter essa velocidade para chegar ao destino no horário. Não vou mudar em nada minha conduta"?

No final, a gente procura dar um alerta, e esperar que as autoridades façam algo. Melhorem sinalização ou condições de asfalto, coloquem redutor de velocidade... Mas, na maioria das vezes, é o leitor comum o protagonista desses textos trágicos, e que poderiam dar outro rumo às histórias. E aquelas com final feliz são cada vez mais raras em minha editoria.

A que mais gostei de escrever desde que iniciei na função, no início deste ano, foi do rapaz que possui deficiência em um dos braços, que caiu em um córrego em uma tarde de chuva intensa com granizo, e foi levado pela correnteza. Passou pelas galerias e por debaixo de uma rua, até que conseguiu se agarrar em galhos e gritar por socorro. Em meio a todo aquele barulho da chuva, quem ouviu foi uma mulher que passava de moto e que, mesmo usando capacete, percebeu os gritos e parou para ajudar o rapaz que se afogava a vários metros da via. Ela precisou caminhar pelo capim para descobrir que realmente tinha ouvido o pedido de ajuda. Avisou outras pessoas, que conseguiram cordas e tiraram o rapaz, exausto, das águas turbulentas. E ele viveu para contar essa história.

Que venham outras assim. Essas eu faço questão de lembrar que não são obras de ficção.

16 de jan. de 2017

Felipe é um cara legal

Felipe é um cara legal. Mas quase nada sei do Felipe. O pouco que sei demonstra que é um cara legal... Ele trabalha em um quiosque de venda de acessórios para celulares, no saguão de entrada de um dos supermercados da cidade. Passa o dia vendo pessoas irem e virem com sacolas de compras. A maioria não para, e nem percebe sua presença.

Essa rotina já se mantém há alguns meses, tempo suficiente para que Felipe tenha decidido que quer algo mais para sua vida, que esse é um serviço temporário, que provavelmente está fadado à extinção já que tudo que ele comercializa ali pode ser encontrado na internet, muitas vezes por preços menores.

Há duas semanas fui até seu quiosque procurando capa para meu novo smartphone. Como sempre, tonha comprado o aparelho mais barato que encontrei, que apenas oferecesse todas as funcionalidades principais exigidas pelo mundo ocidental contemporâneo. A consequência disso é que os acessórios são sempre difíceis de encontrar. O quiosque de Felipe era apenas mais uma tentativa, sem grandes expectativas.

- Boa tarde... Você tem capa para este aparelho? - perguntei

Felipe pegou o celular, fez uma rápida inspeção, e deu início a uma busca nas prateleiras nas quais acreditou que pudesse encontrar algo. Depois de cerca de um minuto, voltou de um compartimentos que parecia ser do estoque de coisas que, pensou, nunca venderia.

- Olha... pra não dizer que não tenho nada... tenho essa aqui. - estendeu uma capa preta brilhante, e já foi vestindo em meu aparelho, me entregando em seguida.
- Quanto custa?
- Vinte reais, mas eu faço por dez.

Diante de meu silêncio, pareceu decepcionado:

- O que foi? Não gostou do modelo?
- Ah, não é isso. Claro que se tivesse mais opções seria ideal, mas, é que não é pra mim. É pra minha esposa. Comprei um celular igual para ela. E não tenho certeza se ela vai gostar do modelo... Mas, eu vou fazer o seguinte, vou tirar uma foto dessa capa, envio para ela, e ela já me responde se gostou ou não.

Felipe fez cara de quem estava terminando de ter uma ideia. Fechou um pouco mais as pálpebras, enquanto me olhava, como se tentasse adivinhar minha reação diante das palavras que viriam a seguir. Então, com a decisão tomada, veio com essa:

- Faz o seguinte: leva pra ela de presente.
- Como assim?
- Pode levar. A vida é assim, um ciclo: a gente se encontra de novo, e um dia posso precisar de uma ajuda sua. Leva pra ela de graça.
- O-obrigado. - falei, ainda sem acreditar

Foi quando quis saber o nome do rapaz, cuja voz tinha uma entonação que parecia dizer sempre "não se preocupe, tudo vai dar certo", independente do que ele estivesse falando. Isso foi na primeira semana do ano, e me fez acreditar que as coisas tendem a melhorar. Que 2016, por mais difícil que tenha sido, pode estar fazendo as pessoas repensarem muitas coisas, talvez deixando questões materiais de lado. Que, a partir de 2017, uma nova era se inicia, com mais bondade nos corações, pessoas querendo fazer amizades e reconhecendo que vivemos na mesma bolha perdida no espaço. Me fez voltar a ter fé na humanidade, pôs um sorriso em meu coração.

Ou... Felipe é apenas um cara legal.