27 de nov. de 2018

Choque de realidade

Não é novidade para mim trabalhar no setor do jornalismo policial. Claro que não faço apenas isso, porque a editoria Cidades possui esse nome, justamente, devido à larga abrangência de temas que pode abordar. Mas as ocorrências envolvendo polícia, bombeiros e afins são bem comuns.

Já havia trabalhado escrevendo sobre homicídios, roubos, furtos, agressões antes, ao longo dos cerca de 10 anos de jornalismo diário. E achava que toda essa desgraça não me afetava, e que reportava o que acontecia com a frieza quase igual à do assassino que eu descrevia.

Fingia indiferença. Procurava imaginar que a cena de crime era tão falsa quanto aquelas mostradas no seriado CSI. Que um cadáver era um boneco, e não uma vida que tinha se desintegrado. Mas aí, não sei se devido à minha recente condição de pai ou devido ao acúmulo de experiências vividas nas reportagens, algo diferente ocorreu há algumas semanas.

Fui até um bairro da cidade onde um homem havia sido achado morto dentro de sua casa. Ele morava sozinho. Aparentemente, morte natural. Mas, fiquei chocado com o fato de que sua morte só foi percebida devido ao mau cheiro da decomposição de seu cadáver. O odor tomava conta de um quarteirão.

Não fiquei muito tempo no local. Peguei as informações principais. Voltei à redação. Mas fiquei pensando, em um misto de surpresa, orgulho profissional e tristeza, que eu conhecia o cheiro de um corpo de decomposição. E, de todas essas sensações, o que permaneceu foi a tristeza e uma espécie de choque com o qual convivi nos próximos dias.

Ao chegar em meu condomínio, no dia seguinte, após o expediente, senti novamente um cheiro forte, entre o amargo e o adocicado, e subitamente tive a certeza de que era o odor de um cadáver. Um dos moradores do prédio, dentre os quais alguns são sexagenários, devia ter falecido em seu apartamento. Como os vizinhos quase não se veem, podia ser qualquer um.

Comecei a suar frio e sentir taquicardia. Finalmente o mal que eu noticiava diariamente havia me seguido até minha casa. Logo o cheiro se tornaria insuportável. Alguém acionaria o síndico, uma das portas seria arrombada. A PM, o Samu, o IML... essa rotina que conheço bem acabaria passando diante dos olhos de minha filha de dois anos. Eu não queria isso.

Comentei por alto com minha esposa sobre esse receio, que me chamou de maluco. E devia ser maluquice mesmo, porque ela disse que o cheiro era de um bolo que havia queimado no forno de alguma cozinheira desatenta. Dormi preocupado, porque o cheiro ainda estava nos corredores do prédio quando saí para levar o lixo para fora.

No dia seguinte, pela manhã, eu ainda sentia o mau cheiro. Estava mais forte ou mais fraco? Eu não sabia. Mas as manhãs são mais frescas, seria normal se estivesse mais fraco. Quando, no final da tarde, notei que o cheiro praticamente havia desaparecido, ainda pensei que alguém poderia ter retirado o cadáver do local.

Não havia cadáver algum. Todos os vizinhos foram vistos caminhando, e bem, pelas escadas do prédio nos dias que se seguiram. Quem não estava bem era eu, que finalmente havia sido afetado pelos fatos terríveis que descrevo de forma genérica e objetiva nas páginas do jornal. Notícias que agora começam a me comover, chocar, entristecer, indignar. Após anos durante os quais tentei ser uma rocha, escrevendo sobre um pouco da face mais desumana da humanidade, parece que o cenário cenográfico do CSI enfim caiu. E atrás havia um cenário real.

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