Crédito: Fábio Matavelli |
Minha esposa perguntou como consigo lidar com isso. Voltar para casa e viver a vida normalmente, mesmo presenciando e relatando o que há de pior e mais cruel na sociedade. Respondi que encaro como uma ficção. Finjo que estou descrevendo algo de que não faço parte. Não vejo outra forma de fazer isso sem entrar em parafuso.
Não quis detalhar, na reportagem de uma semana atrás, como as pessoas contaram ter visto um casal feliz, com uma menina de dois ou três anos comendo uma coxinha em uma lanchonete à beira da estrada, sem saber que, minutos depois, restaria viva apenas a criança, sem os pais. Nem detalhei, no texto que foi ao jornal nesta quarta-feira, como uma criança havia milagrosamente sobrevivido à colisão de um caminhão em meio ao engavetamento, e morreu atropelada assim que desceu do veículo.
Na verdade, acho que são justamente esses itens que os leitores querem ler. Talvez nem saibam, mas são esses detalhes mórbidos que buscam nas entrelinhas dos muitos caracteres que digito todos os dias. Mas evito dar esse gostinho a eles, porque não tenho a intenção de estimular esse desejo.
Escrevo, muitas vezes, sem entender para quê. Se foram seis óbitos ou um, que diferença irá fazer a não ser para os familiares das vítimas? Um caminhoneiro que dirige de forma imprudente todos os dias, vai ler minha matéria e pensar: "Nossa, que perigo, vou passar a dirigir de forma mais consciente a partir de agora"? Ou vai pensar: "É o tipo de coisa que acontece. Tenho que manter essa velocidade para chegar ao destino no horário. Não vou mudar em nada minha conduta"?
No final, a gente procura dar um alerta, e esperar que as autoridades façam algo. Melhorem sinalização ou condições de asfalto, coloquem redutor de velocidade... Mas, na maioria das vezes, é o leitor comum o protagonista desses textos trágicos, e que poderiam dar outro rumo às histórias. E aquelas com final feliz são cada vez mais raras em minha editoria.
A que mais gostei de escrever desde que iniciei na função, no início deste ano, foi do rapaz que possui deficiência em um dos braços, que caiu em um córrego em uma tarde de chuva intensa com granizo, e foi levado pela correnteza. Passou pelas galerias e por debaixo de uma rua, até que conseguiu se agarrar em galhos e gritar por socorro. Em meio a todo aquele barulho da chuva, quem ouviu foi uma mulher que passava de moto e que, mesmo usando capacete, percebeu os gritos e parou para ajudar o rapaz que se afogava a vários metros da via. Ela precisou caminhar pelo capim para descobrir que realmente tinha ouvido o pedido de ajuda. Avisou outras pessoas, que conseguiram cordas e tiraram o rapaz, exausto, das águas turbulentas. E ele viveu para contar essa história.
Que venham outras assim. Essas eu faço questão de lembrar que não são obras de ficção.
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