16 de jul. de 2006

Panorâmica

Há anos ela vivia no mesmo lugar. Um espaço não muito grande para a maioria das pessoas, mas suficiente para ela. Vivia na praça. Nem por isso se considerava pobre. Ao contrário, durante toda a sua vida nada lhe faltou. Teve comida, teve bebida, teve amores. Sua existência foi simples desde o nascimento. Pudera, ela não incomodava quase ninguém, e até agradava à maioria. Isso acontecia, já era sabido, porque ela não era gente. Ela era uma pomba.
Sendo pomba, se acostumou a ver cenas desagradáveis, mas corriqueiras. Não era a única a viver na praça. Havia também pessoas que dormiam ao relento, e precisavam mendigar. A pomba nunca se preocupou com isso, pois sempre teve uma casa na copa de uma das árvores, perto do estacionamento dos táxis. Casa erguida ali há várias gerações, pela prefeitura. Mas a mesma sorte não tinham essas pessoas.

Já tinha acompanhado a mudança que a praça sofrera ao longo dos anos. Lembrava de quando havia um módulo policial na esquina. O módulo tinha sido demolido para dar lugar a um grande monumento de significado enigmático. Mas o ambiente belo durante o dia, se tornou duvidoso à noite. Depois disso, a pomba viu como o lugar se tornou mais perigoso, não para ela, mas para pessoas. Sem segurança, viu assaltos e tentativas de assaltos. Jovens se drogando e pichando muros.
Isoladas, essas coisas sempre pareceram normais a ela. Mas algo, um acontecimento novo talvez, alterou seu modo de perceber o mundo. Pode ter sido a idade avançada. Ou algum novo sabor de pipoca que a pomba experimentou. O fato é que, num instante, ela passou a entender a injustiça e desgraça que havia à sua volta. Conseguiu fazer associações. Em uma palavra... ela passou a raciocinar.

Notou que tinha visto tudo aquilo a sua vida inteira, e jamais tinha se dado conta. Lembrou que tinha sido sua espécie a responsável pelas boas novas bíblicas. A mensagem contida num ramo, segundo a qual as águas haviam baixado e um mundo novo se iniciava. Parecia tão bom, no princípio.
Tomada por grande desespero e um sentimento de impotência, a pomba levantou vôo e começou a sobrevoar a praça, de onde raras vezes havia saído. Passou diante da Igreja do Rosário e pensou novamente: “Como posso ser o símbolo do Espírito Santo, se nada faço para melhorar isso tudo?”

Em velocidade cada vez maior, continuou contornando a praça, o desespero crescendo em seu pequeno coração. Em meio a tantas imagens, uma chamou sua atenção: a estátua de um homem, com a corda envolta no pescoço e as algemas prendendo suas mãos. Sob os pés da estátua, a frase que tantas vezes foi lida e só agora parecia fazer sentido para o pássaro. “Se dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria.”
E num movimento, descreveu um vôo rápido e fatal, rumo à estátua. Pouco antes do impacto de seu pequeno corpo contra a estátua, pensou que sua morte não mudaria nada. Mas, raciocinou, sua vida também não.
A pomba morreu porque pensou como ser humano. Os homens só vivem porque pensam como pombos.

2 comentários:

Anônimo disse...

>>Nossa!!Profundo!!!Gostei!!
*ah...q bom,consegui acessar!(percebe-se hehe)meu pc é 'de lua'...
um bjo =)

Anônimo disse...

muito bom, retrato cotidiano com pitadas de delírio