28 de jul. de 2006

Surge um coqueiro

Manhã de sexta-feira. Entre um gole de café e uma mordida no pedaço de pão com margarina, um coqueiro. Um coqueiro? Não... nada de sardinha no pão com margarina. Acontece que, olhando através da janela da cozinha, vi um coqueiro, ao longe. A árvore se erguia atrás de um prédio onde, há anos, funciona uma creche comandada por freiras. Há tempos costumo ficar olhando naquela direção. Sempre há algo interessante ali.

Houve uma época em que as freiras resolveram criar um carneiro. Daqui de casa eu podia ver o animal pastando, e me sentia como se vivendo numa aldeia distante, onde a tecnologia das máquinas ainda não tinha chegado. E onde as freiras, para poupar o extenso trabalho que seria aparar periodicamente a grama, decidiram criar um carneiro que fizesse o trabalho quase de graça, deixando para trás apenas alguns montes de bolinhas pretas...

Talvez esses montes tenham aumentado gradativamente até que a presença do carneiro passou a ser indesejada. Ou talvez o bicho tenha dado uma cabeçada em uma das crianças que passavam o dia na creche. O fato é que, certo dia, o carneiro não estava mais lá. Sumiu do mesmo modo que apareceu. E deu lugar a um homem com cortador de grama.

Foi também olhando em direção à creche, numa manhã de inverno em que as freiras promoviam sua tradicional festa junina junto às crianças, que eu vi, pasmem, neve. A festa junina seguia com um locutor animando a dança, e colocando as músicas para divertir a criançada. De repente, começou a cair o que parecia ser uma garoa fina, mas que se diferenciava pelo modo como as gotículas caíam, cada uma dançando a seu próprio modo, fazendo ziguezagues no ar. O locutor disse com incredulidade: “Está nevando!? Está nevando aqui na festa junina!” E o fenômeno não durou mais do que trinta segundos. Mas eu vi.

E agora, um coqueiro. Enquanto tomava café, notei aquele coqueiro que eu nunca tinha visto antes. Como era possível? Mágica, como em “João e o pé-de-feijão”? Há anos olhando naquela direção, nunca tinha visto o coqueiro que se erguia por trás do prédio.

_Que estranho... um coqueiro que nunca vi antes. Como pode ser?

Minha mãe veio com a triste suposição:

_Devem ter derrubado uma outra árvore que estava na frente.

Sim, a explicação era plausível. Outra explicação veio em seguida. Percebi que as folhas do coqueiro estavam amareladas, o que o destacava das árvores em redor. Talvez o fato estivesse relacionado à estiagem prolongada.

Pobre natureza... E eu aqui pensando numa mágica em que o coqueiro nasce da noite para o dia. Ou num desenho animado em que trazem o coqueiro na carroceria de um caminhão, para que seja plantado nos fundos da creche.

Lembrei de uma situação bem diferente, mas que deve guardar alguma semelhança. Foi quando, certa manhã, um ladrão entrou na casa de meu amigo e levou o CPU do computador. Quando meu amigo acordou, descobriu o furto. Mas ficou surpreso ao encontrar, junto à porta de entrada, o velho par de sapatos do ladrão.

Naquele dia, eu e meu amigo ficamos imaginando que ladrão engraçado era aquele... Levou o computador e, em troca, deixou seu velho par de sapatos. E essa hipótese permaneceu por algum tempo. Até que descobrimos que o ladrão também tinha levado um par de tênis do meu amigo.

A boa imaginação tem esse defeito. Às vezes oculta o óbvio, fazendo com que a agradável fantasia se sobreponha à realidade implacável. Até que surge um coqueiro.

16 de jul. de 2006

Panorâmica

Há anos ela vivia no mesmo lugar. Um espaço não muito grande para a maioria das pessoas, mas suficiente para ela. Vivia na praça. Nem por isso se considerava pobre. Ao contrário, durante toda a sua vida nada lhe faltou. Teve comida, teve bebida, teve amores. Sua existência foi simples desde o nascimento. Pudera, ela não incomodava quase ninguém, e até agradava à maioria. Isso acontecia, já era sabido, porque ela não era gente. Ela era uma pomba.
Sendo pomba, se acostumou a ver cenas desagradáveis, mas corriqueiras. Não era a única a viver na praça. Havia também pessoas que dormiam ao relento, e precisavam mendigar. A pomba nunca se preocupou com isso, pois sempre teve uma casa na copa de uma das árvores, perto do estacionamento dos táxis. Casa erguida ali há várias gerações, pela prefeitura. Mas a mesma sorte não tinham essas pessoas.

Já tinha acompanhado a mudança que a praça sofrera ao longo dos anos. Lembrava de quando havia um módulo policial na esquina. O módulo tinha sido demolido para dar lugar a um grande monumento de significado enigmático. Mas o ambiente belo durante o dia, se tornou duvidoso à noite. Depois disso, a pomba viu como o lugar se tornou mais perigoso, não para ela, mas para pessoas. Sem segurança, viu assaltos e tentativas de assaltos. Jovens se drogando e pichando muros.
Isoladas, essas coisas sempre pareceram normais a ela. Mas algo, um acontecimento novo talvez, alterou seu modo de perceber o mundo. Pode ter sido a idade avançada. Ou algum novo sabor de pipoca que a pomba experimentou. O fato é que, num instante, ela passou a entender a injustiça e desgraça que havia à sua volta. Conseguiu fazer associações. Em uma palavra... ela passou a raciocinar.

Notou que tinha visto tudo aquilo a sua vida inteira, e jamais tinha se dado conta. Lembrou que tinha sido sua espécie a responsável pelas boas novas bíblicas. A mensagem contida num ramo, segundo a qual as águas haviam baixado e um mundo novo se iniciava. Parecia tão bom, no princípio.
Tomada por grande desespero e um sentimento de impotência, a pomba levantou vôo e começou a sobrevoar a praça, de onde raras vezes havia saído. Passou diante da Igreja do Rosário e pensou novamente: “Como posso ser o símbolo do Espírito Santo, se nada faço para melhorar isso tudo?”

Em velocidade cada vez maior, continuou contornando a praça, o desespero crescendo em seu pequeno coração. Em meio a tantas imagens, uma chamou sua atenção: a estátua de um homem, com a corda envolta no pescoço e as algemas prendendo suas mãos. Sob os pés da estátua, a frase que tantas vezes foi lida e só agora parecia fazer sentido para o pássaro. “Se dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria.”
E num movimento, descreveu um vôo rápido e fatal, rumo à estátua. Pouco antes do impacto de seu pequeno corpo contra a estátua, pensou que sua morte não mudaria nada. Mas, raciocinou, sua vida também não.
A pomba morreu porque pensou como ser humano. Os homens só vivem porque pensam como pombos.

7 de jul. de 2006

Almas condenadas

Há alguns anos existiu em Ponta Grossa um supermercado chamado Real. Mas isso foi na época em que nossa moeda era o Cruzeiro. Porque agora que nossa moeda é o real, no lugar daquele supermercado está o supermercado BIG, cujo slogan mais recente traz a frase: “É mais que preço baixo. É BIG!”
Ora, se é mais que preço baixo, significa que é preço alto, certo? E se é “BIG”, é um preço altíssimo, certo? Então, será que já despediram o autor desse slogan?
A propaganda é a alma do negócio. Mas algumas dessas almas estariam condenadas, caso as pessoas prestassem maior atenção ao seu conteúdo. Antes eu não ligava a mínima pra isso, mas depois de passar várias horas vendo televisão e escutando a rádio do Terminal Central de ônibus, chega um momento em que a gente percebe o quão estúpidas algumas propagandas conseguem ser.

Mas o pior é uma propaganda que estou vendo na televisão há vários dias. A imagem mostra um menino, cabisbaixo, segurando um ursinho. Não lembro exatamente as palavras, mas o narrador diz algo como: “Por ser mal-criada, essa criança sofreu muito. Aos 5 anos apanhou pela primeira vez, aos 9 anos foi queimada pela primeira vez, aos 11 anos foi violentada pela primeira vez. Denuncie a exploração sexual de crianças.”
Como é que pode? Primeiro, repare que a primeira frase tem duplo sentido. Não dá pra saber se a criança foi mal-educada porque os pais e professores eram incompetentes, ou se foi mal-educada porque a própria criança não respeitou pais e professores.
Depois vem essa seqüência de atrocidades, dentre as quais já fiquei suficientemente chocado com as queimaduras. E o narrador diz pra denunciarem a (e apenas a...) violência sexual, como se as barbaridades anteriores não tivessem importância, e só aos 11 anos a criança precisasse de ajuda.

Devia haver protestos contra essa ausência de lógica que domina, não apenas propagandas e anúncios publicitários, mas também as letras de música. Tudo bem que devemos considerar a licença poética dos músicos. Mas tem uma música que toca há tempos nas rádios FM... Uma parte da letra traz a frase: “Você sempre não quis.” O pior é perceber que a frase só foi feita desse jeito para que a rima funcionasse no final da estrofe, porque “você nunca quis” não daria certo.
Já que comecei falando de supermercado, aqui vai outra pérola do comércio ponta-grossense: “Não tem pra ninguém: supermercado é Armazém!” Ora, se não tem pra ninguém, como é que as pessoas ainda vão até lá comprar? Quem foi que criou esse slogan? Engraçado foi há alguns meses... quando assaltaram o tal supermercado. Quer dizer que tinha pra alguém, afinal!