Depois que mudei meu endereço, percebi que muito das coisas
materiais que me cercavam não tinham um grande valor para mim. Notei que, de
muitas delas, não era difícil me desfazer. Mas também reparei, sem muita
surpresa, que os livros não faziam parte dessa lista de coisas a serem deixadas
de lado.
Colocando os livros velhos na nova prateleira, relembrei
alguns títulos muito bons, os quais precisei reler. De quase todos, eu já havia
esquecido o conteúdo, restando na memória apenas vultos do que continham
aquelas obras que eu insistia em guardar. Motivos eu tinha, e sabia que eram
razoáveis, mesmo estando eles esquecidos.
Dentre os títulos, retirei há algumas semanas o livro
“Ninguém Nada Nunca”, do argentino Juan José Saer. Esse autor, cujo texto
conheci por acaso em seu livro “La Pesquisa” adquirido durante uma feira de
literatura realizada em minha cidade anos atrás, se revelou ser um de meus
favoritos por dois motivos principais: a forma narrativa com muitas vírgulas e poucos
pontos, que leva o leitor de forma quase hipnótica para dentro da história; e a
maneira como descreve pessoas, coisas e ambientes.
“Ninguém Nada Nunca” traz três palavras, em seu título, que
quase não revelam coisa alguma a respeito de seu conteúdo. Há uma trama que
envolve misteriosos assassinatos de cavalos em um vilarejo dos Pampas. No
entanto, enquanto em “La Pesquisa” existe uma história de homicídios que conduz
quase que totalmente a narrativa, em “Ninguém Nada Nunca” esses assassinatos
são apenas o pano de fundo para que Saer possa fazer o que faz de melhor:
descrever.
A leitura pode parecer até cansativa para quem não está
habituado ao seu método, mas é seguramente uma obra de arte o modo como ele
aplica a repetição textual e faz, assim, como que gradativamente o leitor
construa mentalmente o universo descrito. E o leitor faz isso de forma quase
imperceptível, envolto pela tensão que anuncia: algo está para acontecer.
Ao mesmo tempo em que o leitor espera com ansiedade que
surja das sombras o algoz que assassina com um tiro “à queima-roupa” os
melhores cavalos da região, e ao mesmo tempo que conhece um lugarejo envolto
pelo clima tenso da ditadura militar (e o autor encontra aí uma forma de
apresentar o tema) vai sendo apresentado o cotidiano dos personagens, dentre
eles Gato, Elisa, Tomatis, e o ambiente, do qual faz parte a praia, a ilha, o
rio, as árvores, a areia e, mais que tudo, o calor quase insuportável.
Pacientemente, o leitor aguarda o tal acontecimento que se
anuncia implicitamente durante a história, e enquanto isso se envolve com a
vida de pessoas desconhecidas, de trajetórias que poderiam ser classificadas
com corriqueiras, mas que se revelam interessantes, como seria, talvez, a vida
de quem quer que fosse, desde que houvesse uma descrição como a de Juan José
Saer.
Ao terminar a nova leitura de Ninguém Nada Nunca, senti algo
fascinante: saudades. Saudades dos personagens que tinha acabado de conhecer,
mas cujos gestos, palavras e comportamentos me pareceram tão próximos como se
os tivesse conhecido face-a-face.
Não é algo novo para leitores tal sensação. Mas nessa
intensidade, é algo novo para mim. E é fascinante perceber algo novo assim com
um livro que já tinha lido. Indica que não sou mais o mesmo que o leu
anteriormente. Porque o sujeito que leu aquele livro, anos atrás, não percebeu
essa sensação ao concluir a leitura. É bom saber que ainda posso me fascinar
com alguma coisa. Que bom que seja com um livro.