25 de ago. de 2006

Plutão e nossas vidas

Ele, trabalhando no jornal, saía sempre mais cedo, quando ela ainda não havia acordado. Ela, trabalhando numa loja de vendas de celular, só precisava levantar uma hora depois. E assim, o momento do reencontro era quase sempre a hora do almoço, em algum restaurante do centro da cidade. Mas, naquele dia, o silêncio da mulher fez com que ficasse preocupado. Finalmente ela falou.
_Hoje tive tempo de ler o seu jornal.
_“Meu jornal”... essa é boa! – ele sorriu.
_Você me entendeu. – ela disse, de cara fechada.
_Ahn... e achou algo interessante?
_Não gostei de seu texto.
_Qual deles?
_Aquele artigo que fala sobre Plutão ter deixado de ser planeta.
_Ora, o que tem de errado?
_Você escreveu que se sente enganado porque no colégio te ensinaram os nomes de nove planetas. E agora só há oito.
_É... foi o que escrevi. Já tentou dizer os nomes dos planetas do Sistema Solar, agora que retiraram Plutão? “Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Urano, Netuno e...” Fica sempre um “e” no final. Uma espécie de vácuo na memória. Como se Plutão tivesse explodido como aconteceu com Krypton.
_Você está desviando do assunto.
_Não tô não... Tô falando de Plutão. – ele disse, colocando mais salada no prato. Olhou pra mulher e viu que continuava aborrecida – Ahn... por que não gostou do texto?
_Você disse que a culpa dessa desinformação é dos professores, que ensinaram que o Sistema Solar tem nove planetas, sem deixar qualquer chance de questionamento.
_Não. Eu escrevi que eles têm uma parcela da culpa. Mas, é claro... Com essa mania de considerar a ciência uma coisa exata, sempre me disseram que existem nove planetas. Uma vez até me disseram que, com o tempo, poderiam descobrir outros planetas. Mas nunca disseram que um deles poderia desaparecer. Não falaram que isso podia mudar, de acordo com a vontade dos astrônomos. Os professores deviam deixar claro para os alunos, como uma informação pode mudar com o tempo. E mostrar que devemos desconfiar e duvidar das coisas. Mas não fazem isso.
_Acontece que, se os professores fizessem isso, seria o caos. Os professores colocam a ciência como verdade, para que os alunos consigam se apoiar em alguma coisa. Do contrário, as crianças cresceriam sem acreditar em nada. Desconfiando de tudo, seriam tão chatas quanto você. – ela disse, aumentando o tom de voz na última frase
_Mas... o quê...
_Eu sei disso, porque minha mãe foi professora.
_Ah... agora caiu a ficha! Eu tinha esquecido desse detalhe.
_Esquecido, uma ova! Você escreveu aquele texto de propósito, só porque odeia minha mãe.
_Mas, eu não odeio sua mãe! Eu apenas não vou muito com a cara de minha sogra. – brincou.
_Você fez aquele texto pra me provocar!
_Não... espera aí, eu nem lembrei que sua mãe foi professora... Eu não...
_Pois fique aí comendo sua salada, que eu vou almoçar em outro lugar! – gritou a mulher, enquanto arrastava a cadeira, acompanhada pelo ruído do talher que caía sobre a borda do prato.
O ruído de sapatos femininos foi se distanciando, até que a porta da frente se fechasse. As pessoas, que tinham parado de comer a fim de prestar atenção à cena, voltaram ao almoço tranqüilo.
Ele ficou sem entender muita coisa. Imaginou que a mulher tinha enfrentado um dia ruim no trabalho. “Como eu podia saber?”, pensou.
Um garçom, velho conhecido, saiu da cozinha sem saber o que tinha acontecido. Passou pela mesa do jornalista e parou ali por um instante:
_Ei, como vai?
_Tudo certo... (suspiro)
_Eu li seu texto hoje.
_Qual deles?
_Aquele que fala sobre Plutão.
_Ahn...
_Achei muito bom.
_É mesmo?
_Claro. Gostei mesmo do final... como era mesmo?
_“...afinal, se Plutão é ou deixa de ser um planeta, isso jamais vai afetar nossas vidas aqui na Terra.” – lembrou o jornalista
_Isso! Muito bom. Uma grande verdade.
_Uhn... Pois eu nunca desejei tanto escrever uma errata.
E voltou ao almoço.

22 de ago. de 2006

Outro guardamento

De repente eu estava com o carro estacionado diante do cemitério. Aquela manhã era fria para quem estivesse na sombra e quente para quem ficasse no sol. Eu estava na sombra, minha prima estava sentada no banco do carona, ao sol. E nenhum de nós estava satisfeito, principalmente lembrando que estávamos diante do cemitério.
E foi de repente, como costuma ser com qualquer pessoa que se aproxima de um cemitério, sejam quais forem as circunstâncias. Minha prima tinha passado a noite lá em casa e, pela manhã, logo depois de eu ter acordado, o telefone tocou. Enquanto eu ainda tomava minha caneca de café, ela entrou na cozinha e veio trazer a notícia. Algo mais ou menos assim: a madrinha da mãe dela tinha falecido, e eu devia levar minha prima até o cemitério onde, às dez horas, ocorreria o sepultamento.
Assim, chegamos ao local com cerca de dez minutos de antecedência. E minha prima, falante e agitada como sempre foi, começou a contar histórias a respeito do sobrenatural, e me convidou a fazer o mesmo. Felizmente já não sou tão impressionável quanto fui no passado. Depois que a gente vê luzes estranhas no céu, ruídos macabros no teto, fantasmas atravessando a rua, descargas de banheiro funcionando sozinhas... Enfim, a gente se acostuma.
Enquanto conversávamos, apenas uma coisa me deixou realmente intrigado: um homem que estava parado diante do cemitério, ao lado de um automóvel. Ele parecia impaciente. Olhava para o relógio, contemplava o grande eucalipto que já se tornou um símbolo daquela parte da cidade. Depois esticava o pescoço, a fim de olhar ao longe se o cortejo fúnebre já estava chegando. Mas não estava.
E, de fato, havia uma certa demora. Depois de quinze minutos de atraso minha prima já estava se tornando insuportável. Queria que eu a levasse para casa. Parecia querer dizer algo como: “eles não vêm.” Para mim, só havia três explicações possíveis: ou o cortejo tinha se atrasado, ou ela tinha se enganado a respeito do horário, ou estávamos no cemitério errado. E, conhecendo minha prima, eu estava começando a dar excessivo crédito às duas últimas alternativas.
Para solucionar a questão, e mostrar pra ela que eu fazia algo a respeito, telefonei para sua mãe. Bastou que o telefone fosse atendido do outro lado, para que eu visse no espelho retrovisor o cortejo fúnebre que se aproximava. Uma porção de carros foi estacionando nos dois lados da rua.
Minha prima ficou brava comigo. Parece que não estava muito animada para assistir à cerimônia, e esperava que eu já a tivesse levado para casa. Mas essa sua indignação sem motivo não chegou a me preocupar, porque enquanto os vários automóveis estacionavam, eu via o misterioso senhor correr de um lado para outro, denunciando a razão de sua presença no lugar.
Para cada um dos motoristas ele falava alguma coisa, e fazia uma confirmação com a cabeça. E não estava dando seus pêsames. Ele era um guardador de carros. Ou flanelinha, como prefiram chamar.
Jamais gostei de guardadores. Para mim, no quesito chateação, eles estão empatando com distribuidores de panfletos e operadoras de telemarketing. Não tenho nada contra eles, mas sim contra o serviço deles, que várias vezes (senão todas) me pareceu inútil.
Por um pequeno espaço de tempo me concentrei na figura daquele senhor que atravessava de um lado para outro, tentando falar com o maior número de motoristas. Aposto que só conseguiu falar com cinco ou seis daquelas pessoas. Imaginei de que modo ele organizava seu trabalho. Provavelmente ouvia no rádio o horário de sepultamento e corria até o local no horário indicado, a fim de cuidar dos automóveis estacionados. Isso explicava sua impaciência, aguardando pelo cortejo. Devia ter uma agenda com os horários em cada cemitério.
Quando percebi, minha prima já tinha saído do carro e caminhava em direção à pequena multidão que entrava no cemitério. Reclamou sobre não conhecer ninguém. Seria o enterro certo? Não sei quem de nós perguntou, nem lembro se ela respondeu. Enquanto se afastava do veículo, minha prima se virou mais uma vez, fez uma careta pra mim. Talvez tenha mostrado a língua. Me concentrei na direção. Saí com o carro antes de ser detectado pelo flanelinha. Mas, pela primeira vez, desejei que ele ganhasse algumas moedas com o serviço. Sair numa manhã de domingo, para esperar cortejo fúnebre... não é pra qualquer um.

8 de ago. de 2006

Sonhos e água benta

7 de agosto de 2006

Certa vez vi num livro uma ilustração. Acho que era de uma pintura surrealista. Mostrava uma mulher nua, sob a mira de uma espingarda que flutuava e saía de dentro da boca de um tigre que, por sua vez, saía da boca de um peixe dourado. Ao fundo existia um elefante cinza com patas finas e muito longas, como as de uma girafa. E tudo isso parecia sair de dentro de uma romã, em torno da qual havia uma abelha. E a legenda era, se bem me lembro: “Sonho causado por uma abelha sobrevoando uma romã, um segundo antes do despertar.” Ou algo parecido.
Era bem mais complexo, na verdade. Mas é isso o que de vez em quando vem à minha memória. E sempre me pergunto se significa exatamente aquilo que penso: que o autor da obra dormiu à sombra de uma árvore de romãs, e foi acordado pelo zunido de uma abelha que voava perto de um dos frutos. Pouco antes de acordar, o artista fixou na memória as imagens que tinha visto em seu sonho, e transportou para a tela aquilo que não teria sentido nenhum na realidade. Mas essa pintura serve, no meu entender, para demonstrar o funcionamento dos sonhos. Funcionamento que, apesar de confuso, segue uma lógica própria, normalmente baseada na realidade de nosso cotidiano.

Digo isso porque hoje, poucos segundos antes de acordar, sonhei que meu carro tinha cinco limpadores de pára-brisa no vidro dianteiro. E, de algum modo, sei que um dos responsáveis por essa visão maluca é um padre. Porque ontem, por ocasião da Festa de São Cristóvão, e a pedido de meu pai, levei o automóvel para a tradicional benção.
Os automóveis passavam ao lado do sacerdote que, após proferir algumas palavras, jogava sobre o carro a tal água benta, usada pela igreja católica desde o século IV, para benzer e exorcizar. (Li isso no dicionário) Depois que passei por essa experiência – que acredito não ter sido um exorcismo – vi que o vidro da frente tinha ficado um pouco molhado e, bem mais por brincadeira do que por necessidade, acionei o limpador de pára-brisa. Mas eu não esperava que faria tamanha sujeira.
Qualquer dia desses vou perguntar a um padre o que eles colocam naquela água benta. Já vi, durante missas dominicais transmitidas pela TV, o padre dizer para colocarmos um copo d’água sobre o televisor, que assim a água se tornará benta. Logo, sempre pensei que a água benta nada mais fosse do que uma água... benta. Mas não pode ser só isso. No mínimo tem sal naquela água, porque depois de secar ela deixou o vidro manchado de branco.

Isso serviu como um pretexto para limpeza, porque há vários dias o carro não via água de nenhum tipo. Assim, ontem à noite fui dormir pensando que hoje, pela manhã, teria que levá-lo até o posto de combustível para fazer uma lavagem. E foi por isso que tive o sonho maluco com os limpadores de pára-brisa.
O engraçado é que, no sonho, logo depois de perceber o milagre da multiplicação dos limpadores, eu também perdia o controle da direção do carro, que caía num barranco e ficava encalhado. Talvez fosse uma referência à frase que meu irmão disse ontem à noite, também a respeito da benção dos carros: “De nada adianta uma benção, se o que o motorista bebe não é água benta.”
Eu quase não bebo. Mas tendo sonhos como esse... preciso?

4 de ago. de 2006

Teoria dos noventa e nove

Não é preciso ser jornalista para notar que algumas reportagens são recorrentes nos noticiários. E não estou me referindo à corrupção na política, que de tão recorrente já se tornou comum aos olhos da maioria. Mas, por exemplo, quando chega o momento mais frio do inverno brasileiro, sempre tem uma reportagem na região sul. Aparecem as árvores com orvalho congelado nos galhos, entrevistam um velhinho que diz, em 65 anos, nunca ter visto frio como aquele. Passam a mão no gelo sobre o pára-brisa do carro, quebram o lago congelado, filmam turistas maravilhados, exibem o termômetro da praça. Coisas assim.

O mesmo acontece no Natal. No caso, a data é que determina o conteúdo das reportagens, que vão falar sobre a lenda do Papai Noel, o movimento nas lojas, a escolha dos presentes. Na Páscoa, a fabricação de pêssankas, a história de Jesus Cristo e... a criação de coelhos.
Mas existe uma reportagem que costuma ser repetida a cada ano, e que não tem relação direta com estações climáticas ou datas comemorativas. E esta reportagem eu vi no telejornal de ontem. Trata-se do uso comum (e, por isso mesmo, incomum) de números ímpares nos preços de mercadorias. Produtos que, em lugar de custarem R$10,00 custam R$9,99.
Parece uma coisa à toa. Mas o negócio é mesmo violento. Não acredito muito na utilidade desse procedimento, em termos publicitários. Não acho que deixaria de comprar a mesma mercadoria, se custasse um centavo a mais. Ainda assim, sempre existe a questão do subliminar, coisa que a gente não domina.

O problema é que, de subliminar em subliminar, a realidade é apenas uma: não recebo o troco. Nessa jogada de “noventa e noves” a gente sempre sai perdendo. Tudo bem que é coisa de um ou dois centavos. Só que é isso que me deixa pensando... que fim levou as moedas de um centavo??
Se for parar pra pensar, não sei quando foi a última vez que vi uma. Lembro que, há alguns anos, houve uma espécie de campanha para que as pessoas gastassem as moedinhas de um centavo que, segundo especialistas, ficavam perdidas em gavetas e frestas de sofás. Mas aqui em casa não tem nenhuma! Até fizemos uma reforma no sofá...

Então, aqui vai a teoria da conspiração da semana: Será que o Governo não parou de fabricar as moedas de um centavo, e recolheu as que já existiam, numa espécie de acordo com o comércio nacional, que de centavo em centavo acaba lucrando horrores?
E que fim levou as balinhas de troco? Tá tudo escondido com as notas de cem reais?